quarta-feira, 3 de dezembro de 2008


Uma crónica de Natal


São felizes as recordações que guardo dos Natais da minha infância.
Reconheço que algumas das memórias possam ter sido douradas pelo tempo, mas sei, também, que se ao pensar nos Natais de então os sinto como felizes, é porque essas festas antigas algumas sementes de felicidade em mim depositaram, fazendo germinar as imagens que agora contemplo.
Lembro-me, assim, de casas quentes e cheias de crianças risonhas, e de festas bem iluminadas por lustres e candelabros, cuja claridade tornava brilhantes as loiças, os copos de cristal, os talheres, o rendilhado das toalhas de linho, as comidas e doces tradicionais, as imagens do Presépio e os enfeites natalícios, revestindo tudo e todos de uma película de luxo e encanto.
O interessante é que eu não gosto particularmente do luxo, ou do que habitualmente se considera como tal. Mas o luxo da luz, do brilho, da transparência dos vidros e dos cristais associa-se, no meu espírito e no meu coração, ao calor humano, ao carinho, ao convívio, às risadas e correrias, aos momentos de felicidade!
De estranho, ficou-me, porém, durante longos anos, o mistério de as minhas tias avós – traves mestras da família –, se encontrarem ausentes dessas festas da consoada ou do dia de Natal, as quais eram sempre realizadas nas casas dos familiares mais jovens (que eram, nessa época, os meus pais, os meus tios e uns primos da mesma idade). Por qualquer motivo que eu não chegava a compreender, quando se falava em convidar as tias para estas reuniões festivas, havia um adulto que adoptava um semblante grave, baixava a voz, e respondia que as tias preferiam passar o Natal tranquilamente, na sua casa.
É claro que as tias eram muito idosas, sabíamo-lo. A doce tia Amélia, aproximava-se dos noventa anos e a querida tia Helena não estaria, também, muito longe dessa idade. A tia Leonor, com os seus belos olhos azuis, tinha já dificuldade em andar. E a adorada tia Ana, não era nenhuma jovem… Mas isso não as impedia de receber a família, todos os domingos, com um lanche apetitoso! Na verdade, se pensássemos bem, as tias festejavam todo o ano, com excepção do Natal.
Só mais velha vim a compreender o que se passava com a família do meu pai e o Natal: a minha bisavó, mãe da minha avó e das minhas tias, falecera no Natal e, desde então, essa época passara a trazer a todos a recordação dessa severa perda, reavivando o desgosto ano após ano.
Por isso a contenção do meu pai, sempre tão animoso e entusiasta, que no Natal se mostrava mais recatado, embora proporcionando-nos, à nossa mãe e a nós, suas filhas, toda a alegria da época festiva.
Rodeada de carinho e alegria, e embora consciente de que também no Natal se sofrem desgostos, quando a festividade se aproximava eu afastava de mim todos os pensamentos melancólicos. Concentrava-me no júbilo do nascimento de Jesus, na felicidade de reencontrar a família e receber presentes, no luxo das festas e das iluminações natalícias.
Mais tarde, deixei-me imbuir da euforia de enviar cartões e oferecer lembranças, satisfeita por, durante essa época do ano, poder reavivar velhas amizades, obsequiar pessoas por quem sentia gratidão e respeito, e até mesmo corresponder a pequenos favores ou gentilezas que, confusamente, recebera e não soubera retribuir de outro modo.
Os cartões, então, eram receptáculos dos meus bons desejos para a humanidade. Escrevia-os inocentes, ingénuos, exaustivos, enumerando as benesses que sobre o destinatário desejava ver recair. E, ao endereçar e encerrar cada envelope, sabia que o amor depositado em cada missiva não poderia deixar de beneficiar a vida de quem a recebesse. Estava certa de que todos notariam a escolha criteriosa da estampa, o cuidado com que desenhara as letras, a suavidade da caligrafia, a genuinidade dos votos expressos, e sentir-se-iam felizes.Outra circunstância, não irrelevante, consistia no facto de os votos se destinarem a cobrir, não apenas o período natalício, mas todo o novo ano que logo se iniciaria.
Por outras palavras, ao escrever e enviar um cartão de Natal (e eu fazia-os às dezenas!) estava a ofertar ao destinatário todo um ano repleto de saúde, alegria, felicidade, amor e prosperidade!
Aconteceu, no entanto, que, nos primeiros dias de Janeiro de há uns anos atrás, uma tristíssima ocorrência alterou por completo a minha visão do Natal. O meu tio Alberto, irmão mais novo do meu pai, que estava longe, faleceu. O choque foi imenso! O meu pai telefonara-lhe alguns dias antes, e ele parecia bem. Como podia ter-nos deixado tão subitamente?!
Embora o tio Alberto tivesse vivido muitos anos separado de nós, os contactos com ele eram muito frequentes, e sentíamo-lo como alguém extremamente chegado. Contribuía para essa intimidade e para essa estima a sua enorme semelhança com o meu pai, quer na fisionomia, quer nos gestos e até na voz. E, sendo o irmão mais jovem, nunca nos passara pela cabeça que pudesse partir assim! Mas o que me impressionou especialmente foi o aperceber-me de que ele adoecera exactamente durante o período que antecedera o Natal, ou seja, quando, com tanto fervor e amor, eu lhe escrevera um cartãozinho, expressando os sinceros desejos de muita saúde, alegria, felicidade…
E, quando, na noite de Natal, erguendo os copos de vinho, os entrechocávamos, sorridentes, brindando aos presentes e aos ausentes, a todos desejando muita saúde e felicidade, ele era hospitalizado. Afinal, os nossos votos nada significavam! Os meus desejos, os meus apelos, o meu amor de nada valiam! E, no ano que se seguiu, não consegui escrever cartões de Natal. A compra dos presentes tornou-se um fardo. A alegria festiva, anunciada na televisão e na rádio, pareceu-me artificial – o Natal perdera o seu encanto!Interrogava-me: poderemos algum dia reencontrar a alegria e festejar o Natal, depois de perdermos um ente querido durante esta época?
O tempo, que mitiga as dores e nos devolve, aos poucos, a serenidade, acabou por me trazer a resposta no Natal seguinte: O Natal tem que ver com o nascimento de Jesus. Tem que ver com o surgimento de uma nova vida, cheia de energia, de amor e de esperança! E, assim, olhando as crianças, encontramos nos seus rostinhos, nos seus sonhos, nas suas palavras, nos seus olhares, nos seus gestos, o espírito do Natal. E, por eles, escondemos os nossos desgostos, afastamos as nossas mágoas, enfeitamos a árvore de Natal, montamos o Presépio, estendemos a toalha de linho e de renda sobre a mesa, colocamos as loiças de festa, distribuímos os copos de cristal que só deixam o armário uma vez por ano, utilizamos os talheres que lavámos e polimos até brilharem, preparamos as receitas antigas de peru e doçaria, fritamos os coscorões e as fatias douradas, compramos o mais bonito bolo-rei que conseguimos encontrar, e asseguramo-nos de que o Menino Jesus e o Pai Natal deixarão, nos sapatinhos das crianças, os presentes tão desejados. Depois, aquecemos a casa e, acendendo os candeeiros e os candelabros, inundamo-la de luz. Convidamos a família. Ao recebermos, à entrada, cada parente recém-chegado, sentimo-nos felizes por tê-lo junto de nós. Falamos e damos risadas, contentes, enquanto tomamos em nossos braços o seu casaco, e por baixo disfarçamos o saco com os presentes trazidos para as crianças.
As crianças, ah!, essas, correm de sala em sala, risonhas, felizes, brincando com os primos, espreitando o Presépio, observando as luzinhas do pinheiro decorado com fios dourados, figurinhas de madeira e bolas brilhantes.
Olhamos os meninos, agradecendo a Deus pela graça de os ter trazido até nós, e com eles uma nova alegria, fé e esperança! E em cada novo Natal lançamos, nas suas mentes e nos seus corações pequeninos, as sementes que mais tarde germinarão em recordações felizes dos Natais das suas infâncias.


Ilona Bastos
Lisboa, 4 de Dezembro de 2005