quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012


Do Acordo Ortográfico e tudo o mais...


Quando os princípios basilares sobre os quais, desde a infância, se alicerçou tudo em nós – desde os actos mais básicos até aos mais elaborados raciocínios – , quando esses pilares são sucessivamente desgastados e destruídos, entramos numa tolerância indiferente, em que também os alicerces ainda não tocados perdem a sua firmeza e se tornam vacilantes, prestes a entrar em derrocada.
Vem-nos, então, a sensação de iminência do fim do mundo -  ou, pelo menos, do mundo tal como o conhecemos e reconhecemos.
Alargando o olhar e o pensamento, interrogo-me sobre se esta sensação não tem simplesmente que ver com a idade, com as sucessivas mudanças que nos são impostas, que vamos aceitando até que, em nós, algo diz: basta! Então, essa incapacidade de processar mais mudanças sem que a nossa base de sustentação (psicológica) seja abalada, leva-nos a imaginar que tudo rui à nossa volta, quando talvez não seja na verdade assim.
Penso nas pessoas idosas que conheci e que falavam desse mundo que em seu redor viam sucumbir. Jovem que era, apercebia-me de que a única coisa que ruía, na verdade, era a saúde e a vida de quem assim falava. Jovem, apreciava o que em meu redor nascia, crescia, frutificava, um novo mundo em agradável emergência.
Se assim for - se se tratar de uma sensação subjetiva, conversa de quem não tem mais capacidade para processar a novidade - duas vertentes se apresentam: a primeira, é a boa notícia de que, apesar das guerras, do terrorismo e dos cataclismos, o mundo continuará a existir, até que o Sol se extinga ou expluda e abocanhe a Terra; a segunda, é a má notícia de que estamos a envelhecer e a perder a capacidade de acompanhar o ritmo das mudanças.

Ilona Bastos

sábado, 18 de fevereiro de 2012


Anatole France

"24 de Dezembro de 1861.

 Tinha calçado as minhas pantufas e enfiado o robe-de-chambre. Limpei uma lágrima com que o vento agreste do cais me empanara a vista. Um lume claro ardia na chaminé do meu gabinete de trabalho. Cristais de gêlo, em forma de fôlhas de fêto, floriam nos vidros das janelas e escondiam-me o Sena, as pontes e o Louvre dos Valois.
"Aproximei do fogão o meu fauteuil e a minha mesa volante e tomei junto do lume o lugar que «Amílcar» se dignou deixar-me. «Amílcar», em frente do fogão, numa almofada de penas, deitara-se enrodilhado, de nariz entre as patas. Uma respiração igual lhe erguia o pêlo espêsso e ligeiro. Á minha chegada circulou docemente as pupilas de agate entre as pálpebras semi-cerradas que tornou a fechar quási de seguida, pensando: «Não é nada, é o meu amigo.»
"-- «Amílcar» -- disse-lhe eu estendendo as pernas --«Amílcar», príncipe sonolento da cidade dos livros, guarda-noturno ! Tu defendes contra os vis roëdores os manuscritose os impressos que o velho sábio adquire a preço de um módico pecúlio e de um zêlo infatigável. Nesta biblioteca silenciosa, que as tuas virtudes militares protegem, deixa-te dormir, «Amílcar», com a moleza de uma sultana ! Porque tu reúnes, na tua pessoa, ao aspecto formidável de um guerreiro tártaro a graça pesada de uma mulher do Oriente.  Dorme, heróico e voluptuoso «Amílcar», até à hora em que os ratos dansem ao luar, perante a Acta Sanctorum dos doutos Bolandistas.
"O comêço dêste discurso agradou a «Amílcar», que o acompanhou de um ruído de garganta semelhante ao de uma chocolateira a ferver. Mas, como eu elevasse a voz, «Amílcar» advertiu-me, abaixando as orelhas e enrugando a pele zebrada da fronte, de que era impróprio declamar assim. E pensava :
"-- Êste homem dos alfarrábios fala para nada dizer, enquanto que a nossa governanta nunca pronuncia senão palavras cheias de senso e interêsse, contendo quer o anúncio de uma refeição, quer a promessa de uma palmada. Sabe-se o que ela diz. Mas êste velho ajunta sons que nada significam.
"Assim pensava «Amílcar»."

Anatole France, O Crime de Silvestre Bonnard, tradução de Jaime Cortesão, Livraria Lello  Irmão Editores