segunda-feira, 13 de junho de 2011


Deixemos Falar os Nossos Corações


Nada do que eu digo 
É apenas isso -
É sempre muito mais. 

Tu recebes as palavras,
Misturas o tom e a cor
Dos teus pensamentos,
Referências de outros sons,
De outras imagens e momentos,
Do passado e do futuro
Que sonhas, sentimentos, 
Felicidade e sofrimento.

Por isso, o que eu digo
Não é o que tu ouves.

E te proponho:
Silenciemos. Deixemos
Falar os nossos corações.


Ilona Bastos


..

quinta-feira, 9 de junho de 2011


CAMPO DE OURIQUE
Nos passos de Fernando Pessoa


O bairro está alegre, não sei porquê.
Talvez seja da chuva, que parou.
Ou dos raios de sol, coados pelas nuvens,
inundando a manhã de uma luminosidade bela,
que desce pelos telhados, infiltra-se na folhagem
e desliza para a calçada,
onde desenha bordados brilhantes,
trabalhados na sombra.

Noto nos transeuntes um semblante animado.
Apercebo-me mesmo do seu andar saltitante,
tão pouco habitual neste bairro antigo.
Tantas e tantas vezes tenho percorrido estas ruas,
observando o cansaço nos rostos com que me cruzo!
Ou será ilusão minha, influenciada que vou
pelas histórias tristes que acabei de ouvir
e pelos conselhos difíceis que tive de dar?

Mas hoje não, não há cansaço, nem rostos sofridos –
o bairro está alegre. E não sei porquê.
É certo que a manhã me sorriu,
que me não couberam dramas, nem tragédias,
que as respostas as tive na ponta da língua
e que as notícias as pude dar animadoras!

Intrigada, pergunto-me se Fernando Pessoa,
que por estas mesmas calçadas andou,
que também aqui morou ao longo de quinze anos,
notou estes desvarios do pacato bairro
que num belo dia de Setembro resolve descobrir-se alegre,
vestir-se de luz dourada, pincelar os edifícios de magia
e brindar os seus habitantes com a graça da Felicidade.

Quando Pessoa dizia “Vou num carro eléctrico,
e estou reparando lentamente, conforme é meu costume,
em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim”,
estaria a referir-se igualmente a estas mudanças bizarras,
a estas revelações inauditas, inesperadas,
em caminhos tão conhecidos, tão familiares
que suporíamos não poderem apresentar para nós
quaisquer segredos ou mistérios?

Repito os passos de Fernando Pessoa.
Dirijo-me ao Jardim da Parada.

Hoje, até a estátua da Maria da Fonte, por entre as flores,
parece ter perdido a sua rigidez de pedra
e adquirido movimento nos cabelos soltos,
flexibilidade nos gestos de mulher do povo
que reivindica a liberdade.
Acena, risonha, às crianças nos baloiços,
à senhora idosa de bela cabeleira branca,
que empurra o carrinho do neto,
à fonte, em êxtase, que lança diamantes em redor.

Que alegria desgovernada percorre o bairro!
Até me custa deixá-lo, sem saber o que fará
quando lhe virar as costas.
Explodirá em festivos destemperos?
Mas o estômago, insistente, requisita almoço urgente,
e já abandono o jardim, passo a rua das sardinheiras,
dobro à esquerda e avanço, desaguo na Maria Pia,
ainda a tempo de ver, voltando a cabeça rapidamente,
as cascatas de luz que descem pelo casario
e inundam o vale de Alcântara.


Ilona Bastos