domingo, 24 de maio de 2009


Italo Svevo

"Recebida a grande quantia, até Mario se encheu de admiração. Estranha vida a do homem, e misteriosa: com o negócio feito por Mario quase inconscientemente começavam as surpresas do período pós-bélico. Os valores deslocavam-se sem norma e muitos outros inocentes como Mario tiveram o prémio pela sua inocência, ou, por demasiada inocência, foram destruídos; coisas que sempre se viram, mas que aparentavam novidade por se verificarem em tais proporções que quase pareciam a regra da vida. E Mario, devido ao dinheiro que tinha no bolso, ficou a olhar com surpresa e estudou o fenómeno. Deslumbrado murmurou: "É mais fácil conhecer a vida dos pássaros do que a nossa." Quem sabe se a nossa vida não parecerá aos pássaros tão simples a ponto de os fazer crer que poderão reduzi-la a fábulas?"

Italo Svevo, Um Embuste Perfeito, edições quasi

quarta-feira, 20 de maio de 2009


Jacarandás

A rua, salpicada em tons de lilás, não é normal!
Não é comum, este colorido, em pincelada larga!
É paisagem de quadro impressionista:
Pinceladas lilases pela calçada branca rotineira;
Pinceladas junto aos círculos, quase perfeitos,
de terra, que o lancil abraça;
Pinceladas sobre as sardinheiras vermelhas
e os tejadilhos dos automóveis
(vejam o escândalo das pinceladas lilases
nos carros encostados ao passeio!);
Pinceladas estampadas no alcatrão negro da avenida!
Tudo, tudo desrespeitosamente, sonantemente, lilás!
Mas não de uma forma ténue, suave, discreta... Não!
Pinceladas audaciosas, numerosas, densas, afrontosas,
que acordam, que indignam, que se impõem!
Vejam a imagem desta tarde citadina,
como se de uma tela se tratasse!
Vejam os fatos cinzentos dos executivos,
surpreendentemente pintados de lilás!
Vejam o cão, preso a um dono, atado a uma trela,
espantados, retocados a lilás!
E os pombos, em pequenos passos pela pintura,
voando no meio de tão lilás incongruência!

Avanço, deliciada!
Deixo-me envolver, também eu, na Magia
e na Arte desta Primavera radiante,
que se desvenda, vibrante,
ao tornear de uma esquina.
Deixo-me cobrir de pétalas maravilhosas,
destas flores lilases que os jacarandás
negligentemente espargem sobre a cidade.


Ilona Bastos

terça-feira, 5 de maio de 2009



E, luminoso, nasce o dia!


Joe Hisaishi & New Japan Philharmonic Dream World Orchestra

sábado, 2 de maio de 2009


Em primeiro plano, a funcionária de longos cabelos negros. Em segundo, uma fila longa e baixa de ficheiros. E sobre estes, em fundo transversal, uma janela larga sobre um retalho de vista lisboeta. Uma linha de edifícios em traça antiga: alguns, pintados de novo, recuperados - brancas, as sancas e as varandas -, as paredes em azul vivo; outros, com aspecto degradado, as fachadas bege a descascar, os ferros das persianas enferrujados, as beiradas a desfazerem-se, enfeitadas de ervas daninhas.

Precisamente sobre estas construções de outros tempos, que os proprietários esquecem e os inquilinos amam ou deploram, voam os pombos, que depois desaparecem por entre as grades rendilhadas de uma varanda alta, prenúncio da mansarda em cuja janela se empoleira, curiosa, movendo activamente a cabecita, uma ave cinzenta, de pescoço verde nacarado.

Ao lado, uma pequena parcela de um edifício mais recente, talvez dos anos sessenta. E em seguida, impecavelmente pintada de rosa, uma construção mais baixa, com as suas janelas de portadas verdes e brancas, os vidros visivelmente lavados e brilhantes, o telhado precedido de um delicioso friso de azulejos em tons de bege, branco e verde.

Depois, outro esquecido dos tempos antigos, enorme, rosado, desgastado pelos anos. Mudo, cego, imóvel, não atrai os pombos nem as gentes. E aí se queda, já do meu lado direito, sem emoção.

Assim termina este quadro-janela que entretém a minha espera na Conservatória, enquanto a dita funcionária de longos cabelos negros fala pausadamente à senhora que, diante de si se senta, rodeada de pastas e papeis.

E o tempo continua a passar.

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Ilona Bastos


Joe Hisaishi Live - Summer ( from Kikujiro )


http://fr.youtube.com/Nomyo

sexta-feira, 1 de maio de 2009


NÃO ESTÁS SOZINHO

Também eu - quem fui, já mais não sou!
Penso, e não penso, o que então pensei,
Sonho, e não sonho, o que em vão sonhei,
Que o desespero, tão perto de mim rondou…

Mas há momentos em que tudo muda:
Uma palavra, um gesto, uma afeição,
O que, não mostrado, logrou ver, a razão,
O que, não dito, meu coração desnuda.

E só por isso - até se os anos passam,
Se os apelos, desatendidos, murcham,
Se o desejo, insatisfeito, se aniquila,
Se mesmo a fé, perante o mal, vacila -,

Há esta réstia de esperança viva,
Há esta chama que brilha e alumia,
Há este trilho que guia o meu caminho,
Há esta luz que diz: não estás sozinho!

Ilona Bastos

Créditos Finais de A Viagem de Chihiro

vídeo de milorsiul