terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Verdade

Todos sentados, ao entardecer, à volta do fogo, disse o lavrador:

«Verdade é a semente lançada à terra, promessa de vida gerando vendavais de trigo dourado, riqueza ao sol.»

«Verdade», emendou o pescador, «é a força do mar, em ondas revolto, avançando vagas poderosas que arrastam e vergam, comandam e domam a vida, na água.»

O lenhador abanou a cabeça. «Verdade é a seiva que brota dos caules, é o âmago dos troncos, a força da floresta, que cresce e avança, se acalma em clareiras, se agiganta em passadas de vida, cobrindo a terra.»

Todos sentados, já noite, olharam o fogo e sorriram.


Ilona Bastos

Das Folhas de um Livro



Música: Reverie, Debussy - Fotos: Ilona Bastos

sábado, 7 de novembro de 2009

domingo, 1 de novembro de 2009

Stendhal
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"No livro da cozinheira burguesa, a receita de guisado de lebre começa com estas palavras muito sensatas: "Irá necessitar de uma lebre."
Portanto, é em vão que se pretende ser artista sem ter engenho.
Neste aspecto, todos os discursos do mundo serão inúteis se um homem não tiver esta intuição profunda."
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Do Riso, Um Ensaio Filosófico Sobre um Tema Difícil e Outros Ensaios, livros de bolso EUROPA-AMÉRICA
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domingo, 11 de outubro de 2009

O vendedor de laranjas
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Naquele final de tarde de Verão percebi que o velho homem das laranjas, mais do que vida, era arte pura. Era pintura, de certeza, à luminosidade dourada do sol poente. Era bailado, era mímica. Era poema, era cinema por certo. Era até conto completo ou romance verdadeiro.

Naquele final de tarde de Verão, igual aos demais finais de tarde em que avistara o homem das laranjas, pareceu-me ser ele mais do que o habitual vendedor de fruta, debruçado, escolhendo, enchendo os sacos das laranjas e tangerinas e estendendo-os aos compradores, todos de braços erguidos para receber os frutos brilhantes, para entregar uma nota, para agarrar o troco, para cumprimentar.

Naquele final de tarde de Verão, os turistas que passeavam na calçada aproximavam-se do homem das laranjas na sua camioneta aberta, repleta de caixas com laranjas e tangerinas, e o homem, mergulhado naquele mar belíssimo, era mais do que um mero vendedor, era um ilusionista, um mimo, um actor.

Naquele final de tarde de Verão, na sua camisa aos quadrados, com o boné de fazenda na cabeça, o vendedor de laranjas erguia o corpo e o olhar, as mãos cheias dos redondos e sumarentos frutos, e atirava-os certeiros às mãos das crianças passantes, da senhora sozinha, do casal de namorados, do senhor idoso de gesto digno e calças impecáveis, às mãos abertas dos passageiros de cada uma das carruagens do comboiozinho de veraneantes que, lento, rodava perto - e assim, do homem das laranjas partiam visíveis ondas de alegria, que estampavam sorrisos em todas as faces.

Naquele final de tarde de Verão, o vendedor das laranjas distribuía fruta e ternura, e chamava de longe os banhistas cansados da subida pelas arribas, ainda cobertos da areia macia que lhes salpicava as roupas, as toalhas de praia, as bóias e os colchões cheios de ar.

Naquele final de tarde de Verão, ali mesmo, junto ao mar, ao som de uma flauta escondida pelas árvores, rostos felizes acorriam às varandas, dos prédios saíam pés ligeiros, pela calçada, mãos leves descascavam laranjas, e lábios sorridentes acolhiam os seus gomos generosos - numa sequência perfeita, com iluminação magnífica e definição divinal.

Naquele final de tarde de Verão, o velho vendedor de laranjas era estrela de cinema, era anjo, maestro, bailarino, mimo, poeta, personagem de romance. Era vida. Mais do que isso – era arte pura!
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Praia da Rocha, Julho de 2004
Ilona Bastos
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sábado, 3 de outubro de 2009

sábado, 12 de setembro de 2009

Bento XVI

"Uma das pobrezas mais profundas que o homem pode experimentar é a solidão. Vistas bem as coisas, as outras pobrezas, incluindo a material, também nascem do isolamento, de não ser amado ou da dificuldade de amar. As pobrezas frequentemente nasceram da recusa do amor de Deus, de uma originária e trágica reclusão do homem em si próprio, que pensa que se basta a si mesmo ou então que é só um facto insignificante e passageiro, um "estrangeiro" num universo formado por acaso. O homem aliena-se quando fica sozinho ou se afasta da realidade, quando renuncia a pensar e a crer num Fundamento. A humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos unicamente humanos, a ideologias e falsas utopias. A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado: esta maior proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento de que são uma só família, a qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por sujeitos que não se limitam a viver uns ao lado dos outros."

Caritas in Veritate, Terceira Carta Encíclica de S. S. Bento XVI, Paulus
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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Depois de cruzarmos os portões do jardim, decidimos ir buscar pão para o jantar.
A padaria, do outro lado da rua, foi uma surpresa agradável: pequena, branca e perfumada.
Apesar das paredes em mármore rosado antigo, transmitia uma sensação de actualidade e limpeza inesperadas. Os suspiros, bem esculpidos, de um design dulcíssimo, as bolachas de manteiga, espessas e polvilhadas de açúcar, as línguas de veado, acabadas de sair do forno, os pães de Deus, pães de leite e croissants, muito frescos, o pão, nas mais variadas formas e composições, deliciaram-me.
Encantada, como criança em loja de doces, recordei o sentimento antigo de que os bolos mais saborosos são os da padaria.
Propositadamente demorei-me na escolha e na encomenda. Permiti ao meu olhar e ao meu olfacto que se passeassem livremente pelo expositor de aço inoxidável (talvez daí viesse a inesperada sensação de limpeza…) enquanto dialogava com a vendedora sobre as características dos diversos tipos de pão expostos: as formas, as carcaças, as bolas, as baguetes, os pães de mistura…
Há tanto tempo a comprar pão embalado, no supermercado, esquecera-me até de como é uma padaria!
Finalmente, tudo escolhido, embrulhado e pago, a padeira deu meia volta, anunciando: “Esperem um momento! Vou colocar num saco”. E retirou de uma gaveta, com elegância, um saco alvo, translúcido, onde guardou o pão e os bolos.
Uma alegria genuína me tomou quando recebi a encomenda por sobre o balcão de vidro brilhante.
E, dando as mãos, saímos da padaria.
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Ilona Bastos
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sábado, 5 de setembro de 2009

É necessário que esta louca, esta filósofa, esta sábia, esta criança sonhadora que em mim habita me sussurre, grite, acotovele, acorde e ilumine, para que decida passar algumas palavras ao papel.
Assim me tem trazido a preguiça, ao ponto de me convencer a ignorar a voz desafiante da escrita. Como é isto possível? O que se passa? Será do Verão, que me embriaga de calor, de céu azul e sol, conduzindo-me por caminhos longínquos, tão distantes da poesia? Ou de simples ausência de inspiração, que o morno fluir do tempo acolhe acriticamente e incentiva?
Seja como for, devo estar atenta às mensagens breves que agora me chegam. Não desprezá-las, é o primeiro passo. O segundo é encontrar em mim vitalidade para descobrir o bloco e a caneta. Depois, o resto resolver-se-á na troca de carícias entre o aparo elegante e a superfície atraente do papel. Entre si se entenderão, praticamente sem que tenha de intervir. Nesse bailado sobre o acetinado cor de marfim as palavras surgirão, e com elas as ideias.
Surge-me então a questão: o que nasce primeiro – a ideia ou a palavra? Qual é a causa e qual é o efeito?
Esta dúvida é recorrente no meu dia-a-dia. A possibilidade da inversão do nexo de causalidade persegue-me mais do que seria razoável. Sempre que o resultado de um estudo me é apresentado, interrogo-me sobre se os investigadores tiveram na devida conta a possibilidade de a causa ser, realmente, o aparente efeito, e o verdadeiro efeito a presumida causa. Corolário, talvez, da minha teoria de que as coisas são o contrário do que parecem, será esta suspeita, afinal, uma característica intrínseca da minha maneira de ver o mundo?
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Ilona Bastos
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Joe Hisaishi Live performance

Howl Moving Castle Main them

domingo, 30 de agosto de 2009


Este barulho incómodo, de motor, este besoirar quase insignificante que me acordou, é letal, compreendo-o.

Nem desejo levantar a persiana e encarar a rua. Embora, por outro lado, seja forte a tentação de escancarar a janela, debruçar-me e gritar: “Parem! Que mal vos fez essa árvore?”

A motosserra manhosa continua o seu trabalho e oiço brados (vozes de homem) abafados pelos sons exteriores e pelos ruídos domésticos, estes mais próximos e apaziguadores. A água que corre nas torneiras, o arrulhar dos pombos no sótão, o carro eléctrico, os automóveis a passar, por momentos encobrem a serra persistente, que agora retoma o seu labor acompanhada de outra máquina zumbidora, num dueto que consideraria risível se não adivinhasse fatal.

Fecho os olhos e distingo nitidamente o choupo alto e frondoso, com os seus ramos abertos e as folhas verdes a brilhar ao sol. Como poderá estar doente, comido pelos bichos, com o tronco oco – como dizem – se se ergue majestoso, formando com os irmãos uma magnífica guarda que avança pela calçada, acompanhando o traçado do lancil e projectando, com o balanço dos seus braços, chispas de luz e desenhos de sombras, sobre o empedrado? Como viverá a rua sem o seu príncipe grandioso? Como continuaremos nós o caminho, como sairemos para mais um dia, agora que a nossa vista não encontrará o luzir dos seus abraços, o afago da sua dança, o murmúrio das suas folhas ao vento? Não consigo imaginá-lo.

E não desejo levantar-me, não. Vejo ainda com nitidez o papel ontem afixado no tronco do choupo-negro que nasceu, cresceu e viveu, durante perto de quarenta anos, diante do nosso prédio, e recordo a sentença nele inscrita a caneta vermelha - “Trabalho a executar: ABATE”.
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A motosserra continua o seu indiferente besoirar e eu sinto a minha vida a ficar cada vez mais pobre.

Ilona Bastos

sábado, 29 de agosto de 2009

Plutarco
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"(...) Antístenes dizia justamente que, para nos protegermos, precisávamos de amigos sinceros e de inimigos convictos: os primeiros afastar-nos-ão do mal graças aos seus conselhos, os segundos graças às suas críticas."
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Plutarco, Como Tirar Partido dos Seus Inimigos seguido de Como Distinuir um Bajulador de um Amigo, livros de bolso, Europa-América, Grandes Obras
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quinta-feira, 27 de agosto de 2009


Rosto másculo, algo expectante, cabelo comprido, elegante, vestido à arqueiro, aproximou-se da entrada da clareira, indagando – o vento a mover-lhe a roupa e os cabelos.
Assim me surgiu, precisamente no momento em que pensava: somos mais do que esta aparência exterior, somos, na verdade, todo um mundo interior, composto do que vivemos, lemos, ouvimos, sentimos.
E a imagem – nítida, inesperada ficção – cruzou-se misteriosamente com a constatação quase prosaica, no fulminante segundo em que esta se me revelava.
Levantei-me, dei alguns passos e inclinei-me para alcançar o bloco e a caneta.
A visão permaneceu, esperando, no avesso da retina, enquanto os sons habituais – do comboio, do relógio, da água a correr, da televisão – inundavam o aqui e agora.
Quando comecei a escrever, estendeu a mão, para que a seguisse. E desapareceu, comigo, por entre o arvoredo.

Ilona Bastos

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segunda-feira, 24 de agosto de 2009


Imaginei - como sou boa a imaginar! - que o texto se abrisse, como uma flor que desabrocha, perante ti. E que, no impacto da leitura, revelado o meu mundo, nele embarcasses com alegria. E como nos riríamos, então, no comprazimento dessa comunhão de ideias, desejos e sentimentos que sempre almejei!

Afinal, foi apenas sonho - como sou boa a sonhar! - e tudo aconteceu somente no meu coração...

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Ilona Bastos

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sexta-feira, 14 de agosto de 2009

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Henry David Thoreau
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"Mais do que amor, do que o dinheiro e do que a fama, dai-me verdade. Sentei-me a uma mesa e havia comida fina e vinhos em abundância e atendimento impecável, mas faltava sinceridade e verdade. Virei costas, faminto, e saí de tal ambiente inóspito. A hospitalidade era tão fria como o gelo. Pareceu-me que não havia necessidade de gelo para a congelar. Falaram-me da idade do vinho e da fama do ano da colheita, mas eu pensava num vinho mais velho, mais novo e mais puro, de um ano de colheita mais glorioso, que eles não tinham e nem sequer podiam comprar. O estilo, a casa e terrenos e o «entretenimento» nada representam para mim. Visitei o rei, mas ele deixou-me à espera no seu vestíbulo e comportou-se como um homem incapacitado para a hospitalidade. Havia um homem na minha vizinhança que morava numa árvore oca. Os seus modos eram verdadeiramente régios. Teria feito muito melhor se o visitasse a ele."
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Henry David Thoreau, Onde Vivi e Para Que Vivi, edições quasi
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terça-feira, 11 de agosto de 2009

ESTE VENTO...

Este vento quente, redondo
Que levanta as folhas secas, ao sol
E as faz dançar na tarde amena,
Recebeu-me em seus braços
Doces, e levou-me em passeio
Pelas ruas da cidade.

Ilona Bastos

domingo, 9 de agosto de 2009

Não importa que me visites e assegures que sim, que me compreendes, se as tuas palavras não logram alcançar os meus ouvidos, ou se dos tímpanos não passam, ou do cérebro não descem, ou no coração não ecoam, pulsantes, nem se desfazem em microscópicas partículas de energia que pelo meu corpo se espraiem, até atingir as extremidades nervosas, à flor da pele, onde o sentir é mais profundo...

É difícil, sim, prosseguir esta caminhada solitária em que não existe resposta aos nossos apelos. Como o conseguimos antes? Levados por um impulso inicial, que nada parecia deter ou refrear. Não contava, então, o silêncio que perseguia as nossas palavras. Nem o eco, por vezes perturbante, das releituras insistentes que fazíamos, esperançados de encontrar a resposta na própria pergunta formulada.

Depois, não sei porquê, tudo se tornou diferente. Onde dantes se avistava um campo fértil - em que uma nova planta sempre se destacava, do solo surgida -, nasceu um deserto com as suas dunas, apenas interrompido por súbitos e tristes oásis, que mais faziam sobressair a desolação em redor.

Agora, lendo outrem que do mesmo modo esmoreceu, se apagou e deixou simplesmente um antigo rasto no ciberespaço, senti-me compreendida e acompanhada neste caminho solitário que ambas percorremos, cada uma por si, inicialmente inspiradas e felizes, mais tarde desiludidas e murchas, como a flor que brilhou ao sol e encantou, mas finalmente viu perdido o seu fulgor e se escondeu entre as páginas fechadas de um livro que ninguém lê.

Nem vejo o que escrevo, mas isso não interessa. Não é agora o desenho das palavras que me toca, nem a estética dos seus traços sulcando o papel - conta somente a torrente que da minha alma jorra e nesse desabafo intempestivo encontra inesperada pacificação.

Como eu, também tu percorreste esta via, indiferente à indiferença, auto confiante e esperançosa, adivinhando algo que nos últimos meses perdeu contornos e se esfumou, mas que uma súbita luz faz ressurgir no horizonte.

Talvez agora regresse. Quem sabe o reencontro tenha acontecido e de mim para mim possa retomar o diálogo que o tempo interrompeu mas não calou em definitivo.
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Ilona Bastos

sábado, 11 de julho de 2009


silêncio


libertam-se os pensamentos
livres e leves
farrapos de nuvem
no silêncio
da noite

gosto do silêncio
sempre gostei
permite-me escutar o tic tac
a pausa entre o tic e o tac
entender que o tac tem som de toc

por isso gosto do silêncio
onde se estampa o cloc
da porta que é
muito suavemente
fechada

no silêncio se afaga o rumorejar
da roupa que me veste
e ouço atentamente
o som da malha
da fazenda surpreendente

gosto muito do silêncio
que desvenda
o gorgolejar da água
entre a garrafa
e o copo onde se espraia

belo silêncio
me revela os passos
mansíssimos
sobre a carpete do corredor
a caminho do quarto

onde anseio
pelo ranger ligeiro da cama
pelo murmurar inigualável
dos lençóis onde me esperas
e me aninho a sorrir

Ilona Bastos
Lisboa, 28 de Outubro de 2004

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Silencia-se agora a casa, para ouvir Carl Orff e a sua Carmina Burana


UC Davis Symphony, the University Chorus and Alumni Chorus and the Pacific Boychoir perform Carl Orff's "Carmina Buran," at the Mondavi Center on the campus of UC Davis.


segunda-feira, 8 de junho de 2009


ORAÇÃO

Neste dia vou dizer mil palavras.
Palavras de júbilo ou de tristeza,
Palavras de ira ou de comoção,
Substantivos aos centos,
Pronomes sem conta,
Adjectivos à discrição,
Preposições simples e compostas.

Neste dia sair-me-ão da boca
Expressões que nem conheço como minhas.
Vou ser sisuda no discurso,
Ou irónica no comentário.
Vou gritar chamamentos,
Laconicamente concordar,
Ou irromper em desabafos.

Que dessas mil palavras
Sejam duas dezenas das que valem,
Das que sabemos ser puras,
Das que garantem ser sãs,
Das que pronunciamos com candura,
Das que se erguem ao alto,
Numa oração ao Senhor!

Ilona Bastos
Lisboa, 15 de Junho de 2004


sábado, 6 de junho de 2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Rainer Maria Rilke
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"Ambos nos recostámos simultaneamente nas cadeiras, o que fez os nossos rostos mergulharem na sombra. Pousei a minha chávena de vidro, alegrei-me por o chá ter um brilho dourado, lentamente voltei a esquecer esta alegria e perguntei subitamente: «Ainda se lembra de Deus?»
"O desconhecido refectiu. Os olhos penetravam no escuro e, através dos pequenos pontos de luz nas pupilas, pareciam duas longas áleas cobertas de folhagem num parque sobre o qual pousam luminosa e amplamente o Verão e o Sol. Também estas áleas começam assim: com uma arredondada luz crepuscular, estendem-se por uma escuridão cada vez mais cerrada até a um ponto distante e reluzente - a saída do lado oposto para um dia talvez ainda mais claro. Enquanto fazia esta descoberta, ele disse hesitante como se se servisse de mau grado da voz: «Sim, ainda me lembro de Deus.»"
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Rainer Maria Rilke, Histórias do Bom Deus, Quasi

quarta-feira, 3 de junho de 2009


QUANDO SONHAMOS!

Ouvindo música,
Vou escrevendo
Ao sabor dos sonhos
Que inundam minha mente,
Invadem meus ouvidos,
Transbordam em meu olhos,
Colorindo as paisagens
Do tom que é o dos sonhos.

Que bela é a vida
Quando sonhamos!

Como apaixonados,
Observamos a Natureza
Com encantamento,
Aceitamos os outros
Com carinho,
Levantamo-nos, pela manhã,
Cheios de um entusiasmo
Que ilumina o nosso olhar.

Que boa é a vida
Quando sonhamos!

Atraímos a beleza aos nossos olhos,
A harmonia aos nossos ouvidos,
A maciez à nossa pele,
A doçura à nossa boca,
O perfume à nossa inspiração,
A fluidez aos nossos pensamentos,
A leveza aos nossos gestos,
A esperança à nossa vida.

Que sabor tem a vida
Quando sonhamos!


Ilona Bastos

domingo, 24 de maio de 2009


Italo Svevo

"Recebida a grande quantia, até Mario se encheu de admiração. Estranha vida a do homem, e misteriosa: com o negócio feito por Mario quase inconscientemente começavam as surpresas do período pós-bélico. Os valores deslocavam-se sem norma e muitos outros inocentes como Mario tiveram o prémio pela sua inocência, ou, por demasiada inocência, foram destruídos; coisas que sempre se viram, mas que aparentavam novidade por se verificarem em tais proporções que quase pareciam a regra da vida. E Mario, devido ao dinheiro que tinha no bolso, ficou a olhar com surpresa e estudou o fenómeno. Deslumbrado murmurou: "É mais fácil conhecer a vida dos pássaros do que a nossa." Quem sabe se a nossa vida não parecerá aos pássaros tão simples a ponto de os fazer crer que poderão reduzi-la a fábulas?"

Italo Svevo, Um Embuste Perfeito, edições quasi

quarta-feira, 20 de maio de 2009


Jacarandás

A rua, salpicada em tons de lilás, não é normal!
Não é comum, este colorido, em pincelada larga!
É paisagem de quadro impressionista:
Pinceladas lilases pela calçada branca rotineira;
Pinceladas junto aos círculos, quase perfeitos,
de terra, que o lancil abraça;
Pinceladas sobre as sardinheiras vermelhas
e os tejadilhos dos automóveis
(vejam o escândalo das pinceladas lilases
nos carros encostados ao passeio!);
Pinceladas estampadas no alcatrão negro da avenida!
Tudo, tudo desrespeitosamente, sonantemente, lilás!
Mas não de uma forma ténue, suave, discreta... Não!
Pinceladas audaciosas, numerosas, densas, afrontosas,
que acordam, que indignam, que se impõem!
Vejam a imagem desta tarde citadina,
como se de uma tela se tratasse!
Vejam os fatos cinzentos dos executivos,
surpreendentemente pintados de lilás!
Vejam o cão, preso a um dono, atado a uma trela,
espantados, retocados a lilás!
E os pombos, em pequenos passos pela pintura,
voando no meio de tão lilás incongruência!

Avanço, deliciada!
Deixo-me envolver, também eu, na Magia
e na Arte desta Primavera radiante,
que se desvenda, vibrante,
ao tornear de uma esquina.
Deixo-me cobrir de pétalas maravilhosas,
destas flores lilases que os jacarandás
negligentemente espargem sobre a cidade.


Ilona Bastos

terça-feira, 5 de maio de 2009



E, luminoso, nasce o dia!


Joe Hisaishi & New Japan Philharmonic Dream World Orchestra

sábado, 2 de maio de 2009


Em primeiro plano, a funcionária de longos cabelos negros. Em segundo, uma fila longa e baixa de ficheiros. E sobre estes, em fundo transversal, uma janela larga sobre um retalho de vista lisboeta. Uma linha de edifícios em traça antiga: alguns, pintados de novo, recuperados - brancas, as sancas e as varandas -, as paredes em azul vivo; outros, com aspecto degradado, as fachadas bege a descascar, os ferros das persianas enferrujados, as beiradas a desfazerem-se, enfeitadas de ervas daninhas.

Precisamente sobre estas construções de outros tempos, que os proprietários esquecem e os inquilinos amam ou deploram, voam os pombos, que depois desaparecem por entre as grades rendilhadas de uma varanda alta, prenúncio da mansarda em cuja janela se empoleira, curiosa, movendo activamente a cabecita, uma ave cinzenta, de pescoço verde nacarado.

Ao lado, uma pequena parcela de um edifício mais recente, talvez dos anos sessenta. E em seguida, impecavelmente pintada de rosa, uma construção mais baixa, com as suas janelas de portadas verdes e brancas, os vidros visivelmente lavados e brilhantes, o telhado precedido de um delicioso friso de azulejos em tons de bege, branco e verde.

Depois, outro esquecido dos tempos antigos, enorme, rosado, desgastado pelos anos. Mudo, cego, imóvel, não atrai os pombos nem as gentes. E aí se queda, já do meu lado direito, sem emoção.

Assim termina este quadro-janela que entretém a minha espera na Conservatória, enquanto a dita funcionária de longos cabelos negros fala pausadamente à senhora que, diante de si se senta, rodeada de pastas e papeis.

E o tempo continua a passar.

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Ilona Bastos


Joe Hisaishi Live - Summer ( from Kikujiro )


http://fr.youtube.com/Nomyo

sexta-feira, 1 de maio de 2009


NÃO ESTÁS SOZINHO

Também eu - quem fui, já mais não sou!
Penso, e não penso, o que então pensei,
Sonho, e não sonho, o que em vão sonhei,
Que o desespero, tão perto de mim rondou…

Mas há momentos em que tudo muda:
Uma palavra, um gesto, uma afeição,
O que, não mostrado, logrou ver, a razão,
O que, não dito, meu coração desnuda.

E só por isso - até se os anos passam,
Se os apelos, desatendidos, murcham,
Se o desejo, insatisfeito, se aniquila,
Se mesmo a fé, perante o mal, vacila -,

Há esta réstia de esperança viva,
Há esta chama que brilha e alumia,
Há este trilho que guia o meu caminho,
Há esta luz que diz: não estás sozinho!

Ilona Bastos

Créditos Finais de A Viagem de Chihiro

vídeo de milorsiul

terça-feira, 31 de março de 2009

sexta-feira, 27 de março de 2009

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O TEMPO
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Quando voltará o tempo
a estender-se a nossos pés
como uma planície verdejante?
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Que saudades das tardes imensas,
infinitas, em que brincávamos,
corríamos, descansávamos
e líamos, horas a fio,
esses romances que nos enchiam a alma
e que em nós se tornaram!
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Durmo demais ou de menos?
Sou lenta ou, antes,
apressada em demasia?
Manhãs e tardes esfumam-se
na voragem do dia-a-dia…
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Nervosamente antecipo o pôr-do-sol,
enquanto percorro este labirinto
feito de momentos compartimentados,
intercalados por corredores
apinhados de ânsias e temores,
que são o meu tempo de hoje.
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Sonho com o regresso do tempo infindo,
em que o corpo voltará a correr livre,
como criança, e o espírito, ousado,
voará mais alto do que nunca!
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Tanto desejo esse tempo!
Tanto planeio criar
nessa planície verdejante!
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Caiam paredes!
Dilate-se o espaço!
Germinem sementes!
Estenda-se a nossos pés
a imensidão do tempo!
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Ilona Bastos
Lisboa, 15 de Dezembro de 2004
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Gabriel Fauré: Pavane, Op. 50
Paintings By "CLAUDE MONET"
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sábado, 21 de março de 2009

Dia da Poesia

O ESCREVER DA POESIA

Não sei se escrevo poesia
Ou se a poesia me escreve.

É presunção, decerto, julgar-me criadora,
Chamar poesia a estas palavras
Que debito, desajeitadas e frouxas,
Nas brancas páginas de um caderno.

Maior presunção, ainda,
Acreditar que meus actos desconexos,
Pensamentos e gestos perplexos,
Encerram em si a poesia, o motor
Gerador do meu viver.

E, contudo, a poesia existe em mim
E em meu redor. Sinto-a!
Encontro-a amiúde,
Em manhãs de sol radiante,
Em tardes de plúmbeo céu,
Em noites quentes de abóbada estrelada.

Nem sempre, é certo, a reconheço,
Nem sempre, é certo, me toca e aborda…
Não sei mesmo de onde vem,
Os caminhos que percorre,
Suas maneiras e manhas.

Dias há que a procuro em vão,
Nas esquinas e nas sombras,
Mesmo nas iluminadas avenidas
Que essa luz branca, esfuziante,
Torna nítidas e confusas,
Na confusão que tudo invade,
E cresce, se a poesia não está.

É-me estranha, é-me íntima a poesia!

Ténue, fugidia, forte, impressionante,
Dá sentido ao que sentido não tem,
Mas se a escrevo ou se me escreve,
Isso é que eu não sei bem…


Ilona Bastos
Lisboa, 9 de Março de 2005


quinta-feira, 19 de março de 2009

Sinfonia nº 9 de Beethoven

Chegou a Primavera

QUE QUERES? É PRIMAVERA!

Que queres tu? É Primavera!
Porque lhe vaticinas a morte, se o sol brilha
e nos enche a alma de alegria, e os pássaros,
rejubilando, nos iluminam o pensamento
com ideias de felicidade?
Porque insistes que esta bênção é passageira?
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É Primavera, não compreendes?
Precisas que grite, para to explicar,
o milagre da Natureza?
É necessário que te prenda e te cale,
para que deixes de murmurar, amargamente,
sempiterno velho do Restelo,
"Ah, mas este bom tempo não vai durar"?
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Não percebes?
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Que precisamente por ser efémera
a Primavera é superiormente bela?
Que exactamente por este calor ameno, benfazejo,
ser transitório, é sumamente aconchegante?
Que a explosão de vida que nos faz renascer
reside na precariedade desta luz abençoada,
alagada pela chuva, açoitada pelo vento?
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Cala-te, se não sabes apreciar
o magnífico dia que nos aguarda!
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Que queres? Tudo passa, tudo muda,
e só por isso podemos permanecer
como somos.

Ilona Bastos

domingo, 15 de março de 2009

SEMENTE DE PRIMAVERA

Onde se esconde, em mim,
Esta semente que germina
Ao chegar da Primavera?

Será no coração pesaroso
Que o Inverno deixa mouco,
Mas com a Primavera remoça
E canta, e esperto reconhece
Em redor, o amor,
A vida, a felicidade?

Será no cérebro cansado,
Que o Inverno torna vago,
Mas que a Primavera espevita,
Encanta, afaga, e inspira,
De ideias fervilhante,
Cintilante, criador?

Será no olhar embaciado,
Que de cores se enche, louco?
No olfacto, inebriado
Pelo aroma das flores?
Nos ouvidos doloridos,
Que na música se perdem?

Ou na pele
Que, brilhante, resplandece?
Ou na língua,
Que em paladares mil se deleita?

Onde, onde se esconde
Esta semente que agora floresce
E me inunda de Primavera?


Ilona Bastos
Lisboa, 22 de Março de 2005

segunda-feira, 9 de março de 2009

sábado, 7 de março de 2009


Karl Jaspers

"A filosofia é o acto da concentração pelo qual o homem se torna autenticamente no que é e participa na realidade.
Embora a filosofia possa inspirar qualquer pessoa, mesmo uma criança, sob a forma de pensamentos simples e ineficazes, a sua elaboração consciente é tarefa nunca totalmente cumprida e sempre repetida na sua totalidade presente; assim surge nas obras dos filósofos maiores e, em eco, nas dos menores. A consciência desta tarefa, qualquer que seja a forma que assuma, manter-se-á perenemente enquanto os homens forem homens."


Iniciação filosófica, Karl Jaspers, Guimarães & C.ª Editores



Artwork:Leonora Carrington
Depois da chuva...


A Tempestade Partiu

Agora, que a tempestade partiu,
Escrevo sobre explosões de luz e felicidade.
É a vida! É a vida! Quero agarrá-la!
Finco-me aos raios do sol matinal,
Abraço-me às brancas nuvens
Que o céu enfeitam com encanto,
Deslizo e danço pelo azul celeste,
Mergulho no amarelo dourado das orquídeas.
Como criança, salto correndo
Em passadas largas e leves pela calçada.
Agora, que a tempestade partiu
Volto a agarrar a vida

Ilona Bastos

Ipê Amarelo-2008

quinta-feira, 5 de março de 2009

É quando algo se intromete e sobrepõe a tudo o resto, quando se impõe, se instala e nos comanda, que sentimos ser mais do que somos, veículo do que sobre nós impera, soberano.

Ilona Bastos

terça-feira, 3 de março de 2009

Depois de uma noite de chuva
e de temível trovoada,
insuspeitos arbustos amanhecem
cobertos de flores amarelas.
.
.
Ernesto Cortazar - Youth
Video by mirch11
.
Dou por mim a pensar:

E se for um pouco mais de cor?
E se for aroma?
E se for som: música, ruído ou canto?
E se for sol e luz?
E se forem passos, leves, pela calçada?
E se for o ar a acariciar-me, em movimento?
E se for sorriso e fala?
E se for sabor - intenso, instigante - a café?
E se for filósofo, a questionar-se?
E se for cientista, a desvendar-se?
E se for vida?
E se for ternura?
E se for amor?

E se for a Primavera a insinuar-se
delicadamente, nos meus dias?


Ilona Bastos

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009


MÚSICA SACRA


Nas vossas vozes,
a nave, as ogivas, o altar,
os vitrais, a Mãe do Redentor,
a vida dos santos, os anjos,
o luzir das chamas,
as velas, as colunas,
os bancos, os vultos
atentos, orantes,
e a poeira a pairar
no raio de luz que entra
e se estampa, dourado,
no mel da madeira.

Nas vossas vozes potentes,
alvoroçadas de alegria,
em súbitos gritos de júbilo,
"Aleluia! Aleluia!
O Senhor Ressuscitou!" ,
há Deus!

.
Ilona Bastos

Oliver Sacks

"Pode a mais breve exposição à música clássica estimular ou promover as capacidades matemáticas, verbais e visuo-espaciais em crianças? No início da década de 90, Frances Rauscher e os seus colegas da Universidade da Califórnia em Irvine criaram uma série de estudos para ver se ouvir música poderia modificar os poderes cognitivos. Publicaram vários estudos fundamentados, nos quais explicavam que ouvir Mozart (em comparação com ouvir música "relaxante" ou o silêncio) intensificava temporariamente o raciocínio espacial abstracto. O efeito Mozart, como foi denominado, não só estimulava a controvérsia científica, mas causava uma intensa atracção jornalística e, inevitavelmente, reivindicações exageradas que para modo nenhum eram sugeridas nos modestos relatórios originais dos investigadores. A validade de tal efeito Mozart tem sido contestada por Schellenberg e outros, mas o que está acima de qualquer disputa é o efeito de treino musical intensivo e precoce sobre o moldável cérebro jovem. Utilizando a magnetoencefalografia para analisar potenciais auditivos evocados no cérebro, Takako Fugioka e as suas colegas têm vindo a registar mudanças notáveis no hemisfério esquerdo de crianças que fizeram um único ano de formação em violino, em comparação com crianças sem qualquer formação.

"A implicação de tudo isto para a educação básica é clara. Apesar de uma colher de chá de Mozart provavelmente não poder tornar uma criança melhor a matemática, há poucas dúvidas de que a exposição regular à música e especialmente a participação activa na música podem estimular o desenvolvimento de várias áreas diferentes do cérebro - áreas que têm de trabalhar em conjunto para se ouvir ou tocar música. Para a maior parte dos estudantes, a música pode ser tão importante em termos educativos como a leitura ou a escrita."

Oliver Sacks, Musicofilia, pág.104, Antropos, Relógio d'Água

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009



Como se enche de alegria, a Natureza, sob esta chuva vertical e contínua que faz vicejar os canteiros, as floreiras e a própria mata que diante de meus olhos se ergue, belissimamente verde, até ao branco do céu!

Se a tristeza pudesse de algum modo afectar-me, bastaria a visão das sardinheiras a sorrir na varanda, das folhas dos narcisos a despontarem da terra, para que o meu espírito se iluminasse.

Assim é, de facto: a água é vida, na acepção feliz da palavra, no que ela implica de nascimento e renascimento, no que dela flui de movimento e mudança permanentes, de esperança renovada, de propósitos firmados no sentido do aperfeiçoamento, sempre a caminho do melhor, do mais belo, do mais puro.


Mendelssohn Piano Concerto no.1(2)

Dang Thai Son is playing Mendelssohn G-minor Concerto for the opening night of the 15th International Frederick Chopin Piano Competition

O piano e a chuva conjugam-se maravilhosamente. Como se o bailado da abertura do cortinado desvendasse, na grandiosidade da paisagem verde da mata, o simples prolongamento destas notas vibrantes e felizes que o piano produz. A chuva caindo, o piano tocando, a sensação de que o todo se harmoniza e completa, com energia vital, persistência, plenitude, entusiasmo encantador!

Ilona Bastos

sábado, 24 de janeiro de 2009



VOANDO COM O VENTO


Era uma vez uma pequena pastora chamada Rosa Branca, que vivia com os pais no sopé de uma montanha. De criança, haviam-na incumbido de subir ao monte todos os dias, para guardar o rebanho. E a pequenita, envolta na sua capa de lã, trepava com esforço, encosta acima, até pastagens verdes e tenras.

Ora acontece que certo dia, achando-se Rosa Branca no topo da montanha, entretida a atirar pedras ao longe, para o cão as abocanhar e trazer de volta, ouviu um som sibilante.

Olhou em redor, para baixo e para cima, e acabou por compreender que nada de visível ou tocável emitira tal ruído, pelo que o mesmo se apresentava como que originado do ar. Era o ar que falava, ou melhor, o ar em movimento: o vento.

O vento que, no céu muito azul, impelia as nuvens, pujantes e luminosas, a grande velocidade, qual cajado de pastor guiando o seu rebanho para o norte. O vento que, ao ouvido de Rosa Branca, murmurava, sussurrava, brincando-lhe com os braços e as pernas, puxando-lhe o cabelo, roçando-lhe a cara.

A menina sorriu de prazer. E logo, numa troca de sons e aragens, o vento criou uma relação amigável com a pequena pastora, ao ponto de nesse fim de tarde, de regresso a casa, montanha abaixo, sentir a garota que o vento a acompanhava e amparava na descida.

No dia seguinte, também para a subida - esta mais difícil - o vento deu o seu contributo, empurrando energicamente Rosa Branca, de tal forma que lhe bastou dar amplas passadas pelo ar, que do resto a aragem se encarregou. E em três tempos chegou às pastagens do alto.

Como se entendiam, que ideias ou correntes trocavam, não é sabido, apenas que desde então Rosa Branca deixou de se fazer transportar de carroça, carro ou camioneta, pois que voava com o vento: se queria subir, de imediato um impulso do ar a fazia ascender; se desejava descer, súbita rajada a empurrava em tal sentido - tudo por modos que as distâncias deixaram de existir e, como é costume dizer-se, do longe se fez perto.

O tempo foi passando, Rosa Branca cresceu e, dotada de tal atributo, cansou-se de permanecer na Aldeia. Disse então aos pais que desejava mudar-se para a Grande Cidade, o que estes aceitaram. Na verdade de nada lhes servia levantar oposição - pois pode alguém prender o vento? E à pequena pastora, de mochila às costas, bastou declarar suavemente:

- Para a cidade, vamos!

Ao primeiro passo, o vento empurrou-a, ao segundo passo, o vento dominou-a, e ao terceiro passo, lá ia a menina de cabelos no ar, os braços abertos, as pernas movendo-se em largas passadas pelos verdes campos fora.

Chegada à Grande Cidade, Rosa Branca buscou acomodações em casa de uma parente de há muito saída da Aldeia. A prima Margarida recebeu Rosa Branca com agrado, mas disse-lhe que era pobre, que por isso apenas poderia dar-lhe abrigo no seu lar, com cama e roupa lavada. Quanto ao sustento, devia Rosa Branca buscá-lo fora. Havia, por isso, necessidade de que a pequena pastora arranjasse emprego.

Afoita e resoluta, a moça disse que em nada a abalava tal ideia, pois que de muito criança se habituara a labutar. E saíu em busca de trabalho.

Quando descia a Grande Avenida - uma das principais da cidade -, suavemente impelida pela mesma brisa que afagava o mármore das frontarias, Rosa Branca avistou um letreiro, dependurado de uma vitrine, que pedia para aquela loja uma empregada.

Sem hesitar, a menina entrou, e meia dúzia de palavras trocadas já se encontrava cá fora, com um lenço a tapar-lhe os caracóis escuros, um balde com água e detergente numa mão, e uma esponja na outra. Seguia-a a dona do estabelecimento, segurando um pequeno escadote e fazendo-lhe recomendações para que não caísse.

Ora cair! Como se o vento desamparasse alguma vez a sua protegida!

E, sem a ajuda da escada, Rosa Branca lavou a magnífica montra, limitando-se a dar pequenos saltos quando desejava subir um pouco mais, ou seja, alcançar o cimo do vidro, uns bons metros acima da sua cabeça.

É claro que tal cena tinha necessariamente de chamar a atenção dos transeuntes. Estes, que em grande número desciam a avenida, no afã das compras, detiveram-se junto àquela loja, perante a moça de faces rosadas que, em largos gestos dos braços e das pernas, polia os vidros, ora em baixo, junto ao empedrado da calçada, ora no cimo, erguendo-se no ar como que por magia!

Para encontrar a explicação do que julgavam ser um truque ou uma ilusão de óptica, as pessoas começaram a entrar no estabelecimento, a fazer perguntas, e a comprar.

Depressa a proprietária da loja, Dona Dália, se apercebeu da fantástica qualidade de Rosa Branca, e passou a mandá-la para a entrada, para lavar as vitrines e as portas, assim atraindo enorme clientela.

Aproximava-se o Natal, e a Dona Dália vendia como nunca. Estava satisfeitíssima, e pôde mesmo aumentar o ordenado da sua jovem empregada, que também não cabia em si de contente. Afinal de contas, ganhava o necessário ao seu sustento, e conseguia ainda contribuir para as despesas da sua prima Margarida, sobrando-lhe um pecúlio que enviava para os pais, lá na Aldeia.

Passados o Natal e a euforia das Festas, que haviam transformado a Grande Avenida num verdadeiro salão recoberto de enfeites luminosos de várias cores e inundado de gente e música, começou Rosa Branca a sentir-se entediada do serviço. Na verdade, para quem dantes voava, montanha acima, montanha abaixo, e corria pelos campos fora, desafiando as nuvens, limitar-se agora a subir uns quantos metros tornava-se deveras aborrecido.

Também, diariamente eram apresentadas à pequena novas propostas de emprego, pretendendo dar uso à sua estranha capacidade. Grandes empresas desejavam contratá-la como paquete, para dentro dos arranha-céus de cinquenta andares transportar rápida e eficazmente documentos importantes, sem necessidade de utilizar os sempre superlotados e morosos elevadores. Circos famosos pretendiam exibi-la em magníficos espectáculos, atravessando em gigantescas passadas as enormes tendas de lona...

Só que nenhuma destas ofertas Rosa Branca considerava, pois sabia - e só ela o sabia! - que os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, não voavam, qual pássaro: era, sim, o vento que a tomava e levava. Debaixo de um telhado ou abrigada entre paredes, a menina era exactamente igual a todas as outras, nada de especial a diferenciando.

Pensava Rosa Branca no rumo a dar à sua vida, quando certo dia a Dona Dália apareceu na loja a chorar. O seu filho Jacinto estava muito doente, e os médicos afirmavam que apenas o poderia salvar um remédio muito raro, existente numa única cidade do mundo: a Cidade do Nascer do Sol, que ficava exactamente do outro lado da Terra. Dada o urgência em conseguir o medicamento, e a distância a que este se encontrava, parecia improvável que o rapaz tivesse salvação. Mesmo de avião, a viagem de ida e volta levaria muitas e muitas horas, com que Jacinto não podia infelizmente contar.

Rosa Branca, perante a pobre mãe chorosa, sentiu o coração saltar no peito, enquanto os olhos lhe ganhavam um brilho especial. Havia uma solução! Só havia uma solução! Correr até à Cidade do Nascer do Sol e trazer o medicamento para Jacinto!

A menina e o vento tinham, desta vez, uma missão importante. Não se tratava simplesmente de levar carneiros para o pasto, ou de entreter transeuntes na Grande Avenida. Agora, havia uma vida para salvar!

Fixado o endereço do Hospital onde se encontrava o remédio salvador, e estudado o percurso a seguir, Rosa Branca pôs-se a caminho, arrastada pelo vento.

Pés na estrada, mochila às costas, inspirou profundamente e avançou. Logo o vento correspondeu assobiando, primeiro muito ténue, muito terno, depois fortalecido em rajadas sibilantes que faziam a menina galgar extensões enormes, impensáveis, ultrapassando planícies e rios a que se seguiam montanhas e cordilheiras, oceanos e continentes. Os alísios ajudavam, correntes intensas tornavam-se cúmplices na aventura - a menina seguia de vento em popa. E se das estradas se aproximava, os condutores ficavam a observá-la, boqueabertos perante os seus cabelos ao vento, o seu olhar fito no horizonte, os seus pés velozes mal tocando o chão.

Rapidamente, Rosa Branca atingiu a Cidade do Nascer do Sol, encontrou o Hospital, tomou em suas mãos o medicamento precioso e guardou-o cuidadosamente na mochila. Sem se deter, acenou adeus aos doentes que haviam acorrido às janelas do edifício e, sorrindo, lhe desejavam um bom regresso. Célere, murmurou:

- Amigo vento, regressemos agora!

Logo o vento, para espanto de todos - e principalmente dos marinheiros que na baía orientavam as suas velas -, logo o vento mudou de feição, passando a soprar na direcção da Grande Cidade. E a moça, abrindo os braços, reiniciou passadas imensas pelo ar.

Ao entardecer Rosa Branca chegava à Grande Cidade e entregava à Dona Dália o remédio, que esta de imediato dava de beber a Jacinto. Com o olhar brilhante e as faces coradas, o rapaz engoliu o líquido dourado que a menina trouxera. Depois, com os olhos, muito escuros, pousados em Rosa Branca, murmurou apenas:

- Obrigado!

Toda a noite Rosa Branca permaneceu junto de Jacinto, assistindo o seu sono inquieto. O vento assobiava, insistente, pelas frestas das janelas e das portas, com uma energia colossal. Finalmente, pela manhã, Jacinto acordou sem febre, sorriu e tomou o caldo que a mãe lhe preparou. O pior já passara - Jacinto estava salvo!

Cansada mas tranquila, Rosa Branca saíu para o sol e deixou-se levar pelo vento até casa. Surpreendida, viu-se rodeada de pessoas que a acompanhavam no seu trajecto. Saudavam-na, agradeciam-lhe, esboçavam festas ou pedidos. Outros, tiravam-lhe fotografias e imploravam autógrafos. Em suma, Rosa Branca tornara-se famosa pelo seu feito.

O vento amparava-a como sempre, mas agora muito meigo, quase apagado, consciente do seu cansaço, do seu espanto, lendo-lhe no olhar o tal brilho que ninguém mais sabia explicar.

Durante os dias seguintes, os jornais, a rádio e a televisão não se cansaram de apregoar as estranhas qualidades de Rosa Branca, que correra e voara qual foguete espacial. Todos queriam entrevistas, uma resposta, uma palavra que fosse, um sorriso. Rosa Branca, a pequena pastora, era um fenómeno!

Cansada de tanto alarido, a moça regressou à Aldeia dos pais. Junto à montanha reencontrou, cheia de felicidade, o seu cão, as ovelhas, as ervas mais verdes e tenras do alto. Ali tudo permanecia como dantes. Ao alvorecer o galo cantava. Logo cedo havia que tratar dos animais. Nas subidas pela encosta, com o rebanho e o vento, encontrava renovado prazer.

Certa tarde, andava Rosa Branca pelos campos e sentiu a chegada de um automóvel. Nele vinha Jacinto, já completamente recuperado da doença. Queria agradecer-lhe a sua cura. E a moça levou-o a passear pelas encostas da montanha e junto ao ribeiro.

Muito conversaram Rosa Branca e Jacinto, e a pastora confidenciou ao rapaz o seu segredo. No cimo do monte, observando juntos a imensidão dos céus e os cúmulos enormes que avançavam, tridimensionais, brancos e magníficos, Jacinto sentiu também o vento no interior de si. E mais não foi necessário para que de mãos dadas viajassem os dois, cheios do ar puro das alturas, tão majestosos como as nuvens do céu.
Para Rosa Branca e Jacinto o futuro estava traçado. O vento unira-os e nada podia separá-los. Casaram na Aldeia, numa festa que reuniu a família e os amigos. Depois partiram, felizes.

Agora vivem em África, onde se dedicam a auxiliar as populações pobres e isoladas. Transportam e distribuem notícias, livros, alimentos, água e medicamentos. Nas escolas e hospitais sitos nos mais recônditos locais do continente africano, os seus nomes soam a esperança. Pela savana são familiares as suas figuras esvoaçantes. Sem a intervenção da televisão e dos jornais, os actos de Rosa Branca e Jacinto não são dados a conhecer ao mundo, mas ficam guardados, com eterno reconhecimento, no coração das crianças, mulheres e homens a quem ajudam.

De quando em quando Rosa Branca e Jacinto voltam à Aldeia, com os seus filhos, Jasmim e Violeta.

Pela tarde, brincando com o cão ou colhendo flores amarelas na montanha, todos voam com o vento!


Ilona Bastos