quarta-feira, 3 de dezembro de 2008


Uma crónica de Natal


São felizes as recordações que guardo dos Natais da minha infância.
Reconheço que algumas das memórias possam ter sido douradas pelo tempo, mas sei, também, que se ao pensar nos Natais de então os sinto como felizes, é porque essas festas antigas algumas sementes de felicidade em mim depositaram, fazendo germinar as imagens que agora contemplo.
Lembro-me, assim, de casas quentes e cheias de crianças risonhas, e de festas bem iluminadas por lustres e candelabros, cuja claridade tornava brilhantes as loiças, os copos de cristal, os talheres, o rendilhado das toalhas de linho, as comidas e doces tradicionais, as imagens do Presépio e os enfeites natalícios, revestindo tudo e todos de uma película de luxo e encanto.
O interessante é que eu não gosto particularmente do luxo, ou do que habitualmente se considera como tal. Mas o luxo da luz, do brilho, da transparência dos vidros e dos cristais associa-se, no meu espírito e no meu coração, ao calor humano, ao carinho, ao convívio, às risadas e correrias, aos momentos de felicidade!
De estranho, ficou-me, porém, durante longos anos, o mistério de as minhas tias avós – traves mestras da família –, se encontrarem ausentes dessas festas da consoada ou do dia de Natal, as quais eram sempre realizadas nas casas dos familiares mais jovens (que eram, nessa época, os meus pais, os meus tios e uns primos da mesma idade). Por qualquer motivo que eu não chegava a compreender, quando se falava em convidar as tias para estas reuniões festivas, havia um adulto que adoptava um semblante grave, baixava a voz, e respondia que as tias preferiam passar o Natal tranquilamente, na sua casa.
É claro que as tias eram muito idosas, sabíamo-lo. A doce tia Amélia, aproximava-se dos noventa anos e a querida tia Helena não estaria, também, muito longe dessa idade. A tia Leonor, com os seus belos olhos azuis, tinha já dificuldade em andar. E a adorada tia Ana, não era nenhuma jovem… Mas isso não as impedia de receber a família, todos os domingos, com um lanche apetitoso! Na verdade, se pensássemos bem, as tias festejavam todo o ano, com excepção do Natal.
Só mais velha vim a compreender o que se passava com a família do meu pai e o Natal: a minha bisavó, mãe da minha avó e das minhas tias, falecera no Natal e, desde então, essa época passara a trazer a todos a recordação dessa severa perda, reavivando o desgosto ano após ano.
Por isso a contenção do meu pai, sempre tão animoso e entusiasta, que no Natal se mostrava mais recatado, embora proporcionando-nos, à nossa mãe e a nós, suas filhas, toda a alegria da época festiva.
Rodeada de carinho e alegria, e embora consciente de que também no Natal se sofrem desgostos, quando a festividade se aproximava eu afastava de mim todos os pensamentos melancólicos. Concentrava-me no júbilo do nascimento de Jesus, na felicidade de reencontrar a família e receber presentes, no luxo das festas e das iluminações natalícias.
Mais tarde, deixei-me imbuir da euforia de enviar cartões e oferecer lembranças, satisfeita por, durante essa época do ano, poder reavivar velhas amizades, obsequiar pessoas por quem sentia gratidão e respeito, e até mesmo corresponder a pequenos favores ou gentilezas que, confusamente, recebera e não soubera retribuir de outro modo.
Os cartões, então, eram receptáculos dos meus bons desejos para a humanidade. Escrevia-os inocentes, ingénuos, exaustivos, enumerando as benesses que sobre o destinatário desejava ver recair. E, ao endereçar e encerrar cada envelope, sabia que o amor depositado em cada missiva não poderia deixar de beneficiar a vida de quem a recebesse. Estava certa de que todos notariam a escolha criteriosa da estampa, o cuidado com que desenhara as letras, a suavidade da caligrafia, a genuinidade dos votos expressos, e sentir-se-iam felizes.Outra circunstância, não irrelevante, consistia no facto de os votos se destinarem a cobrir, não apenas o período natalício, mas todo o novo ano que logo se iniciaria.
Por outras palavras, ao escrever e enviar um cartão de Natal (e eu fazia-os às dezenas!) estava a ofertar ao destinatário todo um ano repleto de saúde, alegria, felicidade, amor e prosperidade!
Aconteceu, no entanto, que, nos primeiros dias de Janeiro de há uns anos atrás, uma tristíssima ocorrência alterou por completo a minha visão do Natal. O meu tio Alberto, irmão mais novo do meu pai, que estava longe, faleceu. O choque foi imenso! O meu pai telefonara-lhe alguns dias antes, e ele parecia bem. Como podia ter-nos deixado tão subitamente?!
Embora o tio Alberto tivesse vivido muitos anos separado de nós, os contactos com ele eram muito frequentes, e sentíamo-lo como alguém extremamente chegado. Contribuía para essa intimidade e para essa estima a sua enorme semelhança com o meu pai, quer na fisionomia, quer nos gestos e até na voz. E, sendo o irmão mais jovem, nunca nos passara pela cabeça que pudesse partir assim! Mas o que me impressionou especialmente foi o aperceber-me de que ele adoecera exactamente durante o período que antecedera o Natal, ou seja, quando, com tanto fervor e amor, eu lhe escrevera um cartãozinho, expressando os sinceros desejos de muita saúde, alegria, felicidade…
E, quando, na noite de Natal, erguendo os copos de vinho, os entrechocávamos, sorridentes, brindando aos presentes e aos ausentes, a todos desejando muita saúde e felicidade, ele era hospitalizado. Afinal, os nossos votos nada significavam! Os meus desejos, os meus apelos, o meu amor de nada valiam! E, no ano que se seguiu, não consegui escrever cartões de Natal. A compra dos presentes tornou-se um fardo. A alegria festiva, anunciada na televisão e na rádio, pareceu-me artificial – o Natal perdera o seu encanto!Interrogava-me: poderemos algum dia reencontrar a alegria e festejar o Natal, depois de perdermos um ente querido durante esta época?
O tempo, que mitiga as dores e nos devolve, aos poucos, a serenidade, acabou por me trazer a resposta no Natal seguinte: O Natal tem que ver com o nascimento de Jesus. Tem que ver com o surgimento de uma nova vida, cheia de energia, de amor e de esperança! E, assim, olhando as crianças, encontramos nos seus rostinhos, nos seus sonhos, nas suas palavras, nos seus olhares, nos seus gestos, o espírito do Natal. E, por eles, escondemos os nossos desgostos, afastamos as nossas mágoas, enfeitamos a árvore de Natal, montamos o Presépio, estendemos a toalha de linho e de renda sobre a mesa, colocamos as loiças de festa, distribuímos os copos de cristal que só deixam o armário uma vez por ano, utilizamos os talheres que lavámos e polimos até brilharem, preparamos as receitas antigas de peru e doçaria, fritamos os coscorões e as fatias douradas, compramos o mais bonito bolo-rei que conseguimos encontrar, e asseguramo-nos de que o Menino Jesus e o Pai Natal deixarão, nos sapatinhos das crianças, os presentes tão desejados. Depois, aquecemos a casa e, acendendo os candeeiros e os candelabros, inundamo-la de luz. Convidamos a família. Ao recebermos, à entrada, cada parente recém-chegado, sentimo-nos felizes por tê-lo junto de nós. Falamos e damos risadas, contentes, enquanto tomamos em nossos braços o seu casaco, e por baixo disfarçamos o saco com os presentes trazidos para as crianças.
As crianças, ah!, essas, correm de sala em sala, risonhas, felizes, brincando com os primos, espreitando o Presépio, observando as luzinhas do pinheiro decorado com fios dourados, figurinhas de madeira e bolas brilhantes.
Olhamos os meninos, agradecendo a Deus pela graça de os ter trazido até nós, e com eles uma nova alegria, fé e esperança! E em cada novo Natal lançamos, nas suas mentes e nos seus corações pequeninos, as sementes que mais tarde germinarão em recordações felizes dos Natais das suas infâncias.


Ilona Bastos
Lisboa, 4 de Dezembro de 2005

segunda-feira, 24 de novembro de 2008



V. Turnbull

"Repare bem - diz ainda Durville - que os pensamentos de bondade, benevolência, alegria, esperança, valor e confiança, possuem em si e por si mesmos um poder organizador que assegura a nossa saúde física, atrai para junto de nós tudo quanto é bom e prepara a nossa felicidade, enquanto que a maldade, o ódio, a indolência, a tristeza, o desespero constituem forças destruidores que arruinam nossa saúde física, nos fazem detestados de quantos nos rodeiam e nos arredam do que é bom, preparando-nos assim a infelicidade.

"As pessoas boas, benfazejas, perseverantes, alegres e cheias de esperanças, são atraentes; possuem já a personalidade magnética até um certo grau e têm naturalmente todas as qualidades requeridas para desenvolvê-la rapidamente até um ponto mais elevado. Os malvados devem converter-se, senão em bons, pelo menos em melhores. Os desesperados, os que não chegaram a coisa nenhuma, devem compreender que o fracasso é devido à sua insuficiência, à sua inépcia, à sua ignorância, e devem aprender para obter algum resultado."


V. Turnbull, Curso de Magnetismo Pessoal

sábado, 15 de novembro de 2008


No Rossio Eram Gaivotas


São os pombos, os melros e os pardais
os velhos, os novos e outras gentes
as flores, as bancas e os jornais
as fontes e seus jorros transparentes
as lojas, os cafés, as esplanadas
os turistas, os apressados, os indolentes
os gritos, os sussurros, as risadas
as verdes copas e as castanhas quentes

Porque assim é e sempre foi
na realidade...

Mas neste início de uma tarde calma
azul o céu, brilhante o sol, sereno o ar
tudo em redor ganhou uma nova alma
pois no Rossio eram gaivotas a voar.


Ilona Bastos

quinta-feira, 13 de novembro de 2008


Quando te abrigavas no meu ventre, e eu descia pausadamente esta avenida suave e curva, olhava, por sobre o muro do jardim, as árvores, as flores, os carreiros pejados de folhas e dizia: Vê, meu filho, meu amor! Quanta beleza te espera cá fora!
E quando ouvia os gorjeios dos pássaros escondidos nas ramagens, sorria e murmurava para ti: Escuta, que maravilha! Cantam, as aves, de alegria, por saberem que vais nascer!
E em todos os momentos contigo conversava, confidenciando-te segredos, prometendo-te um mundo encantador, cheio de felicidade, contando-te da ânsia de sentir-te nos meus braços, aconchegar-te junto ao peito, criar-te.
Recordo-me de tudo isto agora que já és homem, e que uma incógnita me atordoa.
Pausadamente desço a avenida, como o fazia então – e também hoje faço o meu olhar saltar o muro baixo, atravessar as grades e espraiar-se pelo jardim, caminhar pelos carreiros, acariciar as sebes, deter-se nas bagas vermelhas e redondas de um arbusto, voejar por entre as folhas douradas que aqui e ali se desprendem dos ramos, planam um pouco e aterram suavemente nos caminhos.
A beleza é semelhante à de outrora. Também o meu espírito se deleita com a Natureza. Mas a dúvida, subtil, insidiosa, macula, incerta, a minha felicidade. Não sei, agora, o que se abriga em mim.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

quarta-feira, 5 de novembro de 2008


E eis que subitamente o sol brilha!
No mais improvável dos momentos, quando o céu cor-de-chumbo ameaça desabar sobre nós, eis que, por entre a pesada camada das nuvens, numa inesperada clareira de azul, um jorro de luz se lança sobre a Terra! E tudo sorri, em redor. Não é ilusão do meu cérebro, que desperta, nem do meu coração, que se alvoroça. É a alegria do sol que insufla vida na paisagem.


Acerco-me da janela e fico a observar a chuva a bater, a colar-se ao vidro por fracções de segundo e a escorregar lentamente, deixando atrás de si um rasto brilhante.
Preparo-me para recebê-la condignamente: visto-me, calço-me, coloco a bolsa a tiracolo, pego na pasta e saio.
Cá está a chuva prometida!
Estranhamente, os outros parecem não vê-la… Deixam os edifícios, caminham pelo passeio, saem dos automóveis, atravessam a rua desprotegidos, como se a não sentissem. Alguns levam mesmo o chapéu-de-chuva no braço, como se de um adereço inútil se tratasse. Só eu subo a rua de gabardina abotoada, guarda-chuva a cobrir-me, chapéu enterrado na cabeça.
Espanto-me. Será que só chove em mim?
Detenho o olhar nas poças de água, onde as gotas, com um só toque, desenham círculos sucessivos, concêntricos, num ondear expressivo. Também sobre o fundo das árvores, escurecidas pelo céu nublado, confirmo as rectas que a chuva risca num movimento ininterrupto.
Será possível que só eu veja e sinta a chuva?
Eis que alcanço a avenida e as dúvidas se dissipam. Aí, a chuva é real nos transeuntes que se deslocam apressados, de botas calçadas, guarda-chuvas abertos, correndo da esquerda para a direita e desta para a esquerda, alheados de tudo o que não seja o seu destino. Nas paragens, recolhem-se debaixo dos abrigos, olhos abertos, expectantes, ou sobrancelhas franzidas. Os autocarros chapinham junto à calçada, e aguardam pacientemente que os rapazes da escola atravessem a passadeira, pesadas mochilas às costas, capuzes na cabeça, mãos nos bolsos, passo decidido. Por vezes, pequenas corridas. E as meninas, de cabelos ao vento, conversam sem parar. Os automóveis sibilam, limpa pára-brisas em acção, avançando sobre o passeio, para deixar uma criança, arrancando depois, com sofreguidão, nos sinais luminosos.
Sim, isto é um dia de chuva – reconheço.
E lanço então os meus passos sobre a multidão em movimento.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008


Ravissante...
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O JARDIM
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Ontem escrevi poemas
Nos canteiros do meu jardim.
Animada, afogueada, em alvoroço,
Abraçada a vasos, folhas e pétalas,
Inspirada ao aspirar o aroma silvestre
Das flores, das plantas, da seiva,
Declinei o lápis sedutor e o papel,
Tomei a terra, o ancinho e a colher,
Decidida, quebrei ressequidas ramagens,
Exaltada, daninhas ervas arranquei,
Ao solo me lancei, confiante, e mergulhei
Minhas mãos, na terra fértil e gentil.
Tirei pedras e raízes, desenhei linhas
De promissores bolbos, enterrados
Sob o húmus revolvido e alisado.
Sementes lancei, em métrica cuidada.
Azáleas rimei com admiráveis ciclamens.
Margaridas de fogosas vestes combinei
Com amarelos narcisos em sono recatado.
Confortei o cândido limoeiro e ergui, por fim,
Para o céu, o corpo cansado e feliz,
As faces coradas, o cabelo em desalinho,
Acompanhando a aragem e o sol alaranjado –
Chave de ouro de outonal entardecer –
No caminho luminoso do Poente.
,
,
Il
Ilona Bastos
Lisboa, 28 de Setembro de 2004

domingo, 26 de outubro de 2008


E se eu largasse o meu olhar?

E se o deixasse percorrer o mar imenso,
Lançar-se, livre, no céu infinito,
Cavalgar pela planície, até ao horizonte?

E se o meu olhar tudo abarcasse
(A humanidade, a fauna, a flora!)
E nele guardasse toda a criação?

E se o meu olhar fosse microscópico
E distinguisse o grão, a gota, a bactéria?

E se o meu olhar fosse macroscópico,
E nele coubessem todas as estrelas e as galáxias?

E se visse o invisível, e, para si, as ondas,
Os aromas e os sons mostrassem cores
E formas dos outros desconhecidas?

E se eu seguisse o meu olhar, e com ele...

Nadasse os oceanos, tal um golfinho,
Voasse pelo azul, como gaivota,
Ganhasse velocidade sobre a pradaria?
(Cavalo selvagem, outrora detido, agora liberto…)

E se tudo soubesse do que via
E a razão de tudo se revelasse?

E se atingisse a molécula, o átomo, o quark,
A mais ínfima partícula, e entendesse
Afinal, do que é construído o Universo?

E se o meu olhar e eu fossemos o mais longe
que é possível ir, e regressássemos
o mais depressa que é possível vir, para contar?

Que encontraríamos e saberíamos,
Que contaríamos, eu e o meu olhar?

Ilona Bastos
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Wild Horses (Ennio Morricone For a few dollars more)
Vídeo by LonelyMoonRise

quarta-feira, 22 de outubro de 2008



Luís Sepúlveda

" Vi-o rumar em direcção ao Nishin Maru e, quando chegou lá, os tripulantes começaram a atirar-lhe lixo para cima, latas e desperdícios, que o Pedro lhes devolvia sem conseguir atingi-los. Depois começaram a fustigá-lo com um jorro de água. Os japoneses riam enquanto o inundavam, e o Pedro concentrava-se em manter o escaler a flutuar.
"Eu não sabia, não era capaz de imaginar o que é que ele pretendia ao manter-se colado ao Nishin Maru, enquanto os tripulantes até lhe urinavam para cima, e o que depois aconteceu vai o senhor ver amanhã, mas seria estúpido não lho contar agora.
"A um dado momento, quando mais duas mangueiras se tinham juntado à brincadeira e o Pedro já quase não conseguia manter-se a flutuar, emergiu junto ao escaler o dorso de uma baleia calderón, que, com todo o cuidado, empurrou o Pedro e a sua embarcação até os afastar do navio. Então, obedecendo a uma chamada que nenhum outro humano ouviu no mar, um chamamento tão agudo que estremecia os tímpanos, trinta, cinquenta, cem, uma multidão de baleias e de golfinhos nadaram velozmente até quase tocarem a costa, para regressarem com maior velocidade ainda e chocarem as cabeças contra o barco.
"Sem lhes importar o facto de que em cada ataque muitos morriam de cabeças rebentadas, os cetáceos repetiram os ataques até que o Nishi Maru, empurrado contra a costa, correu o risco de encalhar. Levaram-no para muito perto dos recifes e havia pânico a bordo."
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Luís Sepúlveda, Mundo do Fim do Mundo


Os Balanços do Vendaval

Desfazem-se as árvores
No vendaval.
Folhas, galhos e ramos
Rebolam pela rua
Em abandono.

Trémulas, as folhas
Vibram desgovernadas,
E à nova rajada se debatem,
Agitam e voam.

As flores tilintam
As corolas coloridas,
Despenteadas, desfolhadas,
Desprotegidas.

Os humanos vultos inclinam-se,
Às roupas e ao corpo abraçados,
Cabelos em labareda,
Contra o vento.

E avança, plúmbeo, sobre a terra
O imenso manto das nuvens.

Ah! As minhas flores!
As que plantei com tamanha devoção!
Aguentarão os balanços do vendaval?


Ilona Bastos
Lisboa, 8 de Outubro de 2004

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

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O homem que plantava árvores
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The Man Who Planted Trees 4/4

1/4 - http://www.youtube.com/watch?v=kSlN_4ZGE38

2/4 - http://www.youtube.com/watch?v=ZW-HhmLXJTM

3/4 - http://www.youtube.com/watch?v=roUIBeQb6cs

Energyium


Olhares

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Tudo se resume a um olhar sobre o mundo e ao desvendar das maravilhas que encerra.
Já em criança o fazia: colhia flores, apanhava pedrinhas, folhas, conchinhas, e trazia-as para casa.
Acabavam, depois, por secar entre as folhas de um livro, perder-se ou ir parar ao cesto dos papéis, essas jóias tão acarinhadas.
Agora não! Encontrei um cofre, que é este blog. Aqui coloco as folhas e as flores que trouxe da rua. Aqui os guardo, expondo-os aos olhos do mundo, os vídeos que me comoveram, as músicas que me deliciaram, os excertos de livros que se me tornaram inesquecíveis.
Eis, portanto, as minhas jóias - o meu cofre!


Encanta-me, claro, a folha amarelecida presa na orelha do cocker spaniel que me olha, inocente, sério, tão embrenhado no seu papel de cão felpudo e focinhudo, de longas orelhas e pêlo dourado!
O seu olhar… e o seu olhar… tão ponderado e prudente.

O que era aquele olhar?
Era o de um ser inelutavelmente destruído?
Ou de alguém, ainda há pouco despertado de um pesadelo,
que se concilia lentamente com a vida?
Perguntou-me: “É para nós?”
Acenei que sim e estendi os braços.
Deu a volta ao balcão e recebeu os sacos.
Vigiei-lhe o olhar, que pareceu tornar-se mais vivo e brilhante. Agradeceu.
Não sei que lhe disse então (sempre vigilante ao seu olhar).
O que era aquele olhar?
Seria o de alguém em luta contra os seres destruidores de almas?
Seria o de quem, em segredo, pactua ainda com demónios,
perpetuando-lhes o apetite devorador?
“Seja como for”, pensei, “Sempre ajudei alguém.”
Mas o segredo daquele olhar perseguiu-me pela manhã.
As suas palavras, os seus gestos, o meneio de cabeça ao responder, o estender dos braços, tudo se tornou irrelevante na minha memória,
tudo reconduzido àquele olhar...
(Terei receado ver, naquele, um outro olhar?)

Penso, agora, naquele olhar, com esperança.
Talvez o céu, esfusiantemente azul,
ou o sol, que insiste em brilhar e aquecer,
lhe tragam o ânimo para vencer.
Quem sabe a fé incendeie aquele olhar...
Quem sabe?


Que dizer, que fazer, que pensar, do teu olhar brilhante, transbordante de riso?

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Ilona Bastos

sábado, 18 de outubro de 2008



Platão

"Por causa disso - continuei -, as pessoas de bem não querem governar nem pelas riquezas nem pela honra, porque não querem ser tratadas de mercenários, exigindo abertamente o salário da sua função, nem de ladrões, tirando dessa função lucros secretos; também não trabalham pela honra: é que não são ambiciosos. Portanto, é preciso que haja obrigação e castigo para que aceitem governar - é por isso que tomar o poder de livre vontade, sem que a necessidade a isso obrigue, pode ser considerada vergonha - e o maior castigo consiste em ser governado por alguém ainda pior do que nós, quando não queremos ser nós a governar; com este medo me parecem agir, quando governam, as pessoas honradas e então vão para o poder não como para um bem, para o gozarem, mas como para uma tarefa necessária, que não podem confiar a melhores que elas nem a iguais. Se aparecesse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para escapar ao poder, como agora se luta para o obter, e tornar-se-ia evidente que o governante autêntico não é feito, na realidade, para procurar a sua própria vantagem, mas a do governado; de modo que todo o homem sensato preferiria ser obrigado por outro do que preocupar-se em obrigar outros."

Platão, A República, Publicações Europa-América

A CHUVA


Este som, leve e metálico,
Da chuva que bate nos vidros,
Acaba por ser gentil…
Mesmo quando o seu toque se acelera,
Ou se retarda em singulares gotas,
Ou quando o vento sopra, em sonantes rajadas,
Ou, sonolento, se esparsa, quase se apaga,
Na inércia cinza da paisagem.

É fresca, esta chuva!
Como a ouço, talvez brejeira,
Não indelicada…
Deixou exultantes as flores vermelhas
Daquela exótica planta do jardim fronteiro,
De que não conheço o nome nem o apelido.
Garota, foge ao ritmo agora, insistente,
Esparrinha o tecto da marquise, desafiante…

As nuvens escuras avançam com rapidez!

Sente-se a chuva protegida, e precipita-se
Com violência implícita,
Tão distante da delicadeza inicial.
Rufia, já não soa a música,
Como anunciara à chegada,
Agreste, não poupa os tons, as linhas,
Os traços, as cores, os vultos
Desta cidade, que se afunda no temporal…


Ilona Bastos
Lisboa, 20 de Maio de 2007

sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Se escrever for simplesmente desenhar palavras belas sobre o papel, então, tudo bem, posso fazê-lo. Com dicionário e tudo, para que nenhum vocábulo, dos mais etéreos, alusivos, sugestivos, me escape.
Mas escrever é mais do que deixarmo-nos levar pelo som das palavras. É nelas encontrar e fixar um sentido belo, uma ideia inteligente.
Por isso, tanto necessito do silêncio - terra fértil -, e da música - boa semente -, para que as ideias germinem e cresçam, floresçam.
Olhando o empedrado do carreiro que atravessa o jardim, sobre ele caminhando, hoje pensava que não me falta o ânimo, o impulso inicial. Do que necessito é de perseverança!
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O Romancista

Parou, subitamente, e ponderou, por momentos, que talvez nunca conseguisse escrever o romance. Faltavam-lhe, porventura, a paciência, a aplicação e a perseverança necessárias!
Nunca esta ideia lhe ocorrera anteriormente. Na verdade, começara por julgar que o problema residia na cadeira, onde não lhe era possível sentar-se, a escrever, por mais de cinco minutos.
Tal convicção levara-o, em certa ocasião, a acalmar-se e observar o assento com extremo cuidado. Analisara-lhe a estrutura, a matéria prima, o design. Apalpara conscienciosamente a almofada que o cobria, no que fora apanhado em flagrante pela empregada, como sempre sorrateira a percorrer as divisões da casa em passinhos silenciosos.
Ilibada a cadeira, voltara o olhar acusador para a desarrumação que cobria a secretária, para os montes de livros e papeis, em caos, que o cercavam. Como queriam que escrevesse no meio daquela confusão?! Nem conseguia ouvir os próprios pensamentos, cercado de tanta retórica, tanto ensaio, tanta lei, tanto apontamento desgarrado! Aquela escrita gritante afugentara até uma ideia fabulosa que lhe surgira no dia anterior, após o café.
Convencera-se, durante algum tempo, de que tomando uma chávena suficientemente grande de café suficientemente forte conseguiria escrever um romance magnífico, essa obra-prima de suspense e emoção de que falava aos amigos havia anos - o aguardado best seller que em tudo suplantaria as historietas banais, tão em voga, que a televisão e os jornais não se cansavam de elogiar.
Evidentemente, o seu romance teria um alcance absolutamente fora de série: à semelhança dos clássicos, narraria uma história universal, susceptível de tocar todos os homens e mulheres, independentemente da nacionalidade, raça ou credo; original, jamais se apagaria da memória de quem o lesse; intenso, inteligente e subtil, prenderia a atenção do leitor desde as primeiras até às últimas palavras; profundo e filosófico, traçaria uma nova concepção do mundo; épico, inspiraria feitos grandiosos; complexo, porém, linear, reuniria o aplauso unânime dos intelectuais; enfim, valer-lhe-ia o Nobel...
Nunca tivera dúvidas da sua elevada capacidade e do seu talento excepcional. E com o café, então, as ideias que lhe atravessavam o cérebro tornavam-se verdadeiramente geniais! Só havia o problema de se dissiparem com tanta rapidez. Ao ponto de não conseguir passá-las ao papel. Quando chegava a garatujar algumas palavras e as relia, constatava, estarrecido, que nelas não encontrava sequer uma sombra da ideia magnífica que lhes dera origem. E então, enervado, atirava com a caneta, amarfanhava o papel, levantava-se da cadeira, deambulando, desesperado, pelo escritório. Daí, naturalmente, que a primeira suspeita tivesse recaído sobre a cadeira... não é verdade? Mas, pensando bem... não seria, antes, uma deficiência da caneta? Como não se lembrara disso? Sempre suspeitara do aparo, um tudo nada grosso em demasia, de uma maciez excessiva, que lhe tornava a letra grande, infantil, pouco profunda... e o gesto da escrita extremamente lento. Com certeza, encontrava-se aí o motivo por que, após tantos anos de tentativas infrutíferas, não conseguira ainda iniciar o seu romance!
Entusiasmado com esta hipótese, que revelava um sem número de novas perspectivas, decidiu explorar-lhe as potencialidades: abriu a segunda gaveta da secretária e de lá retirou, em transportes sucessivos, dezenas de canetas e esferográficas, que largou sobre o tampo, em euforia. Passou, depois, a experimentá-las, uma a uma, metódicamente, desenhando elipses contínuas que percorriam o papel da esquerda para a direita, do topo para a base. E assim preencheu folhas e folhas do seu bloco especial, durante a tarde toda, indiferente à presença da empregada, que o espreitava, encostada à porta, silenciosa, atenta, respeitosa, orgulhosa do seu patrão, o romancista.
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Lisboa, 10 de Março de 2006
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Mendelssohn (concerto para violino - parte 1)

El concierto para violin de Mendelssohn (primeros 5 minutos) . Interpretado por I.Perlman y Yo-Yo Ma
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V
acilo entre o casaco preto e a gabardina branca.
No céu nublado, de tecto baixo, procuro a resposta. Choverá? Um violino ágil, alegre, esperto, ousado, diz-me que a água, se vier, será saltitante, miúda, atrevida. Que venha, que salpique a calçada, escorra pelas folhas das árvores, orvalhe os rostos sorridentes dos transeuntes.
A crer na conversa do violino, a tarde será alegre e molhada, a temperatura, amena e agradável, e o tempo, de amor e felicidade.
Bendito violino mensageiro, que belas mensagens me trazes de Mendelssohn… (concerto para violino em mi menor?)
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Ilona Bastos

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Esta combinação da música - magistralmente composta e excelentemente tocada - com a beleza (perdoavelmente colorida) e o humor, da Orquestra Johann Strauss, dirigida por André Rieu, é algo de absolutamente inebriante.
Evoco a memória dos bailes vienenses animados pelos próprios Strauss e os seus violinos. Chamo até mim a magia da Música, tal como a vejo, agora, no seu arquétipo fundamental – fonte de inesgotável beleza, bem-estar e felicidade.
Nestas apresentações de André Rieu, da sua orquestra e convidados, descontraímos, sentimo-nos rejuvenescer, rimo-nos de puro prazer, dançamos, sentados, ao som das mais maravilhosas composições, deixamos a nossa mente libertar-se das preocupações do dia-a-dia e simplesmente fluir, como flui a água do rio em pleno Verão, com a energia feliz, simultaneamente calma e contagiante, de quem desliza pelo seu leito, sem remorsos, sem medos, antes imbuído da inocente vontade de se expandir, cantar, viver!
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Ilona Bastos

André Rieu at Schönbrunn - The Third Man


André Rieu and the Johann Strauss Orchestra performing at Schönbrunn Palace, Vienna in july 2006. The music is by Anton Karas and features Frédéric Jenniges on zither.

terça-feira, 14 de outubro de 2008



Carlo M Cipolla

"(...) se uma piada humorística não é entendida como tal por parte do interlocutor, é praticamente inútil, senão mesmo contraproducente, procurar explicá-la.
"O humorismo é claramente a capacidade inteligente e subtil de revelar e representar o aspecto cómico da realidade, mas é também muito mais do que isso. Antes de mais, como escreveram Devoto e Oli, o humorismo não deve implicar uma posição hostil, mas sim uma profunda e muitas vezes indulgente simpatia humana. Além disso, o humorismo implica a percepção instintiva do momento e do lugar em que pode ser usado. Fazer humor sobre a precariedade da vida humana à cabeceira de um moribundo não é humorismo. Por outro lado, merecia certamente que a sua cabeça tivesse sido poupada aquele cavalheiro francês que, tendo tropeçado num dos degraus ao subir a guilhotina, se dirigiu aos guardas e disse:
"Dizem que tropeçar dá azar.""
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Carlo M Cipolla, Allegro ma non troppo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008


É preciso que os pensamentos voem pelo meu cérebro, para que tente capturá-los, registá-los como numa película fotográfica, e depois reproduzi-los, escrevendo, sobre o papel.
Mas a escrita será então como um desenho à vista (titubeante, indeciso, ansioso, cheio de boa vontade, contudo, imperfeito).
Como lograr reproduzir o voo magnífico da gaivota? Algum retrato, por melhor que seja, atinge a monumentalidade das suas asas abertas, brancas, brilhantes ao sol da tarde, planando sobre o mar, volteando sobre a terra, numa tridimensionalidade palpável que nos arrebata?
Pois bem, também me sinto incapaz de verbalizar esses vislumbres do conhecimento, da verdade, que por vezes me ocorrem, mas logo se evolam, deixando-me deslumbrada, mas incompleta.
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Ilona Bastos
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Ravel's Bolero by the orchestra directed by Andre Rieu. Video by consejomunicipal

quinta-feira, 9 de outubro de 2008


Outonal

É o clamor difuso das folhas das árvores
É a verdura que emoldura as pedras da calçada
É o voar dos toldos brancos na tenda do jardim
É o céu em tons de cinzento que súbito chora
É o aroma silvestre da terra e da relva molhada
É o vento que empurra gabardinas e guarda-chuvas
É o assobio que entra pelas frinchas das janelas
É a corrida das gotas de água no pára-brisas
É o aguaceiro que pára, espantado, e sorri
É o reflexo agitado dos ramos nas poças de chuva
É o fumo das castanhas assadas à saída do cinema
É a nuvem dourada das folhas varridas e amontoadas
É o florir inocente das violetas no vaso da minha sala.
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Ilona Bastos
Lisboa, 20 de Outubro de 2004

quarta-feira, 8 de outubro de 2008


Fauna & Flora: As Flores, as Folhas e o Vento
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As flores são lindas!
Reguei-as há pouco e balançam na aragem.
Não as plantei, nem sei como se chamam, embora lhes reconheça os traços, o tom róseo das pétalas, o amarelo dos estames.
Não são bastardas nem párias. São flores de jardim, ou pelo menos de vasos bem guardados e cuidados.
Aqui, à varanda, não sei como chegaram. Mas nesta floreira já nada estranho. Dela surgiram e cresceram as mais belas e variadas plantas, cuja origem desconheço.
Antes assim!
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Na marquise, surpreendentemente, voltam a nascer as orquídeas – já a haste se eleva com naturalidade para a luz da manhã! E neste súbito assomo de vida (desistira já de ver brotar orquídeas destes bolbos discretos…) leio o sinal do renascimento, e fico feliz!
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Na rua, é o vento…
Brando, fresco vento, que leve levanta o meu cabelo e voa.
Vai o pensamento na suave carícia deste vento verde que as árvores agita…
Vento brando, fresco, que é brisa de Outono.
Ali se distrai, nas folhas em dança pela calçada.
Vento que é dourado, vento que é castanho, vento que não estranho, pois meu coração habita.

Ilona Bastos
Lisboa, 18 de Outubro de 2007
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Rimsky-Korsakov - Scheherazade (4/5)

Moscow Symphony - Arthur Arnold, conductor - Live from The Hague

terça-feira, 7 de outubro de 2008


Primeira Chuva de Outono
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. Na rua em granito, as pedras brilhantes
e as folhas, em suaves descidas
das árvores molhadas,
amarelas, castanhas, douradas…

Nos veios de terra já surgem, pujantes
tão tenras, as plantas agora nascidas
são verdes, bordadas,
vidas renovadas.

Mas como?
Se ontem mesmo as não vi!
Foi a chuva que as trouxe, de presente, para ti.


Ilona Bastos
Lisboa, 7 de Outubro de 2008


Kiss the Rain, by Yiruma


Incompletude
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Sabes de um dia de céu azul,
atapetado de amarelas flores
brilhantes sobre a relva,
e, no mar, ondas revoltas de espuma
a desvendar brancura?
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E as cores do sonho, que as não vi?
Da mais pura felicidade e da vida?
Incompletude... nesse dia de céu azul
flores e mar.
Eu estava lá. Nesse dia.
Faltavas tu...
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Ilona Bastos
Cascais, 1984

domingo, 5 de outubro de 2008


A Vinha e a Esperança
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Agora, é a videira que se enche de parras e de uvas,
que cresce, afoita, num reboliço de gavinhas,
limbos, pecíolos, bainhas, e que se expande sobre o muro,
galgando-o magnificamente, desafiando a rua,
debruçando-se, viçosa, com seus cachos caprichosos,
sobre os carros, as carrinhas e os apressados peões.
Nada teme esta videira citadina, tão tranquilamente verde,
tão essencialmente terra, água e sol, tão fiel a si mesma!
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Pudéssemos nós, humanos, conhecer a nossa natureza,
Interiorizá-la, assumi-la, vivê-la, expressá-la,
independentemente do solo onde nascemos
e dos obstáculos que a vida nos coloca,
indiferentemente das modas e passageiras seduções.
Seríamos o Homem na sua identidade perfeita,
íntegro defensor do Amor, da Paz universal e do Bem.
Tão natural nos seria sermos humanos como à vinha é ser vinha.
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Na vinha encontro a plenitude, a beleza do ser.
Enquanto os homens continuarem a plantar vinhas na cidade,
alguma esperança haverá para o Mundo!
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Ilona Bastos
Lisboa, 13 de Setembro de 2004


. The Piano - Amazing Short

Animation by Aidan Gibbons; Music by Guillaume Yann Tiersen 'Comptine D'une Autre Ete' from the Amelie OST

Machado de Assis

"E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
—Todos?
—Todos.
—É impossível; alguns sim, mas todos...
—Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara.
De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1º que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.
(...) Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral."

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Machado de Assis,
O Alienista, conto do livro Papéis Avulsos

sábado, 4 de outubro de 2008

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Comunhão com a Natureza
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Nesta dança com as árvores ao vento,
neste embalo dos ramos
que se agitam em verdes labaredas,
nesta sinfonia tocada por entre as folhas,
nesta volúpia dos cabelos sacudidos pela brisa,
neste fruir do mesmo ritmo
que movimenta as copas e os canteiros,
sinto intensamente o prazer
da comunhão com a Natureza!
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Ilona Bastos
Lisboa, 2007

sexta-feira, 3 de outubro de 2008


A Entrevista
Claire
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Ouve! Estás interessado em saber os pormenores da minha aventura desta manhã? Compreendo perfeitamente a tua incontida ânsia, mas por favor não saltes na cadeira! Vou contar-te tudo o que se passou…
Depois de te telefonar, logo cedo, tomei o pequeno-almoço, vesti a gabardina e saí para a rua. Ia preocupadíssima com a entrevista, como deves calcular. Mal dormira durante a noite, revendo mentalmente os pontos altos do meu curriculum e ensaiando respostas inteligentes para as perguntas que eventualmente me pudessem colocar. Agora, sobre a hora, sentia-me confusa e assustada.
Caminhei pelo passeio, um pouco atabalhoadamente, e tentei deter dois ou três táxis, que simplesmente ignoraram os meus apelos. Evidentemente, principiei a entrar em pânico quando percebi que a antecedência, tão minuciosamente calculada, com que deveria partir para alcançar pontualmente o meu destino, começava gradualmente a esgotar-se. E, para cúmulo, o trânsito estava completamente engarrafado!
Desatei, literalmente, a correr, o que se mostrou pouco eficaz. Ao fim de alguns metros tive que desistir, esbaforida, derreada. Voltei a andar, rapidamente. Mas ao passar pela montra de um stand de automóveis vislumbrei, num repente, a minha imagem, e tomei consciência de quão ridícula parecia, no esforço de ganhar velocidade, inclinando-me — cabeça, pescoço e tronco —, obstinadamente, para a frente, como se dessa forma pudesse chegar mais depressa a lugar algum.
Ouvi, então, uma buzina forte, a que se seguiu uma completa orquestra de outras buzinas, igualmente desagradáveis e estridentes. Surgiam já gritos e impropérios, quando recomeçou a chover, desta vez torrencialmente, com rajadas de granizo a bombardear a calçada.
Abriguei-me na porta de um edifício, esperando uma aberta para retomar o caminho. Pessoas passavam a correr, por vezes cobrindo a cabeça com jornais ou pastas. A rua e os automóveis tinham-se tornado cinzentos, de contornos esbatidos, enquanto as árvores, ao fundo da rua, por contraste, sobressaíam brilhantes, assumindo novo colorido e perspectiva. Isso pareceu-me ilógico e, distraída, discorrendo sobre o assunto, meti-me ao temporal, debaixo do chapéu-de-chuva.
Entregue a tais pensamentos, atravessei a rua e novamente me deixei surpreender pelo reflexo da minha imagem na montra do stand de automóveis. Parei e, sem perceber como, dei comigo a pensar: “Que estranho é ser eu!”
Agradou-me a ideia, sorri e recomecei a andar. Agradava-me também, caminhar, ali, naquele instante.
“Que estranho é ser eu!”, repeti, saboreando o pensamento.
Era estranho ser eu, e era ainda mais estranha aquela frase que eu não conseguia esquecer, nem explicar, por resultar de uma sensação súbita, do abandonar-me a mim própria, durante momentos, para me encarar da terra dos outros. E, então, assim avistada, eu era estranha, qual personagem de um filme: uma criatura esbranquiçada, envolta numa enorme gabardina azul, entrando e saindo de edifícios anónimos, semelhantes no seu aspecto e estrutura, mas recheados de diferentes gentes; bebendo-lhes os sentimentos e as imagens, para depressa os esquecer numa passada larga pela calçada, debaixo de um chapéu-de-chuva, rodeada pelo abraço de uma cortina protectora de gotas potentes e projécteis de gelo!
Alguns quarteirões adiante, sustive o passo e voltei a encontrar-me na vitrina de uma pastelaria. Novamente sorri.
“É estranho ser eu!”, insisti, espantada por com esse pensamento me sentir mais eu do que nunca.
Dentro da ampla gabardina azul que se me enrodilhava nas calças também azuis, húmida da cabeça aos pés, encontrei o coração e os olhos frescos, livres, ferreamente decididos.
Com surpreendente firmeza, com uma vontade que me pareceu inabalável, avancei solidamente pela calçada.
Invadi o prédio imponente, ignorando o rasto de água que me jorrava do chapéu-de-chuva e do vestuário. Galguei os degraus, agrupados em lanços, desprezando os patamares, que não levavam a lado nenhum. Empurrei sem hesitar a porta de vidro, e à empregada da recepção anunciei-me, importante, para a entrevista aprazada. Precedi-a no corredor, até ao gabinete pequeno com uma mesa de vidro e um júri de três cavalheiros. Cumprimentei-os, sobranceira, mas amabilizei a conversa com pancadinhas nas costas. Expliquei-lhes ao que ia e interroguei-os.
Inquiri um a um, com calma estudada e simpática atenção. Ao primeiro, de óculos, pálido e de feição miúda, porque tímido e retraído, para não o assustar, indaguei das características do emprego que tinha para me oferecer. Ao segundo, mais rosado e bem nutrido, cabelo a escassear, sugeri, com simpatia, que dissertasse sobre o ordenado e as regalias sociais envolvidas. Ao terceiro, bonacheirão, de risíveis patilhas alouradas, confiei banalidades, a troco de detalhada descrição do gabinete amplo e confortável que me seria destinado.
No final, perante tão evidente ansiedade, guardei silêncio por apenas dois minutos. E, então, para me portar à minha altura, ergui-me, cumprimentei-os e anunciei:
“Muito bem, meus senhores, convenceram-me! Aceito o lugar. Estão contentes?”. Ainda acrescentei, com bonomia: “Afinal não havia razão para tanto sobressalto, não é verdade?”
Já na rua, percebi que parara de chover e abanei ligeiramente o guarda-chuva, para o aliviar de alguma água. Desabotoei dois botões da gabardina e retomei o meu caminho. Olhei-me, benévola, satisfeita comigo própria, em paz.
Bendito o meu olhar complacente, que, conivente, me aprova, me afaga e me inunda desta estranha felicidade!

Ilona Bastos

Pierre Benoit

"Tendo tirado à sorte as diversas partes da Terra, os deuses obtiveram, uns uma parte maior e outros uma parte mais pequena. Foi assim que Neptuno, tendo recebido como partilha a Atlântida, colocou os filhos que tivera com uma mortal numa parte da ilha."
"(...) - Deve compreender - continuou Le Mesge, mais calmo - o erro daqueles que, acreditando na Atlântida, quiseram explicar o cataclismo, em que a maravilhosa ilha se submergiu completamente. Todos acreditaram nisso. Mas a verdade é que não houve uma imersão. Pelo contrário, deu-se uma emersão. Novas terras emergiram do centro atlântico. Quer dizer, o deserto substituiu o mar."
"(...) Mas foi encontrada um mulher que pudesse restabelecer, em proveito do seu sexo, a grande lei hegeliana das hesitações. Separada do mundo ariano pela formidável precaução de Neptuno, ela atrai a si os homens mais novos e corajosos: O seu corpo é condescendente, mas a sua alma é inexorável. Desses jovens audaciosos, ela toma o mais que eles podem dar. Oferece-lhes o corpo, mas domina a sua alma. É a primeira soberana que jamais foi escrava, um só momento, do amor".
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Pierre Benoit, A Atlântida, Editorial Minerva
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Tratei das floreiras do meu jardim.
Recolhi as flores murchas,
espalhei adubo orgânico, feito de folhas,
varri e limpei.
Mas não arranquei os trevos,
que nascem em tufos por todo o lado.
Se destruir os trevos, como posso encontrar
o trevo de quatro folhas que me trará a Sorte?
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PART 2 - AUTUMN - HERFST

Second part of the beautiful video by Esceha57

É no silêncio que germinam os mais belos sons.

Ilona Bastos
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quarta-feira, 1 de outubro de 2008


OUTUBRO


Súbita, inesperadamente,
Passo a linha de fronteira
E penetro em Outubro,
O mês sagrado.
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Ouso sorrir, agora,
Porque chegou Outubro.
Posso largar a bagagem
E acomodar-me bem,
Porque voltei a casa.
As ruas com seus adereços
De prédios antigos,
Sinais luminosos
E árvores douradas,
Tornam-se ternas e familiares,
Porque estamos em Outubro.
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O cair da noite refresca-nos
E convida ao repouso,
Porque estamos em Outubro.
As letras, nos livros, os traços,
No imaculado branco dos cadernos,
Ganham novo brilho,
Porque estamos em Outubro.
Os nossos pensamentos são leves
E a melancolia carinhosa,
Porque estamos em Outubro
.
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A televisão mostra programas
De uma inteligência envolvente,
Porque estamos em Outubro.
As montras das lojas, na cidade,
Com a sua colecção de roupa quente,
Atraem-me com sonhos e acenos,
Porque estamos em Outubro.
A música soa viva, harmoniosa,
Porque estamos em Outubro,
E o vento sopra confidências.

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Porque estamos em Outubro,
O castanho e o verde da Natureza
Acariciam-nos o olhar.
Porque estamos em Outubro,
A chuva, quando vier, se vier,
Será festiva e doce.
Porque estamos em Outubro,
A calçada estenderá, diante de mim,
Um espantoso tapete de folhas
Em todos os tons de amarelo,
De vermelho, de dourado,
E convidar-me-á a sair,
A avançar, a criar, a viver…
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Só porque estamos em Outubro!
..
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Ilona Bastos
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Lisboa, 1 de Outubro de 2005
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Martha Argerich plays Chopin's Nocturne in D-flat major, Op. 27 No. 2Live - April 13, 1972


Beautiful video by kimolerik