Era uma vez uma pequena pastora chamada Rosa Branca, que vivia com os pais no sopé de uma montanha. De criança, haviam-na incumbido de subir ao monte todos os dias, para guardar o rebanho. E a pequenita, envolta na sua capa de lã, trepava com esforço, encosta acima, até pastagens verdes e tenras.
Ora acontece que certo dia, achando-se Rosa Branca no topo da montanha, entretida a atirar pedras ao longe, para o cão as abocanhar e trazer de volta, ouviu um som sibilante.
Olhou em redor, para baixo e para cima, e acabou por compreender que nada de visível ou tocável emitira tal ruído, pelo que o mesmo se apresentava como que originado do ar. Era o ar que falava, ou melhor, o ar em movimento: o vento.
A menina sorriu de prazer. E logo, numa troca de sons e aragens, o vento criou uma relação amigável com a pequena pastora, ao ponto de nesse fim de tarde, de regresso a casa, montanha abaixo, sentir a garota que o vento a acompanhava e amparava na descida.
No dia seguinte, também para a subida - esta mais difícil - o vento deu o seu contributo, empurrando energicamente Rosa Branca, de tal forma que lhe bastou dar amplas passadas pelo ar, que do resto a aragem se encarregou. E em três tempos chegou às pastagens do alto.
Como se entendiam, que ideias ou correntes trocavam, não é sabido, apenas que desde então Rosa Branca deixou de se fazer transportar de carroça, carro ou camioneta, pois que voava com o vento: se queria subir, de imediato um impulso do ar a fazia ascender; se desejava descer, súbita rajada a empurrava em tal sentido - tudo por modos que as distâncias deixaram de existir e, como é costume dizer-se, do longe se fez perto.
O tempo foi passando, Rosa Branca cresceu e, dotada de tal atributo, cansou-se de permanecer na Aldeia. Disse então aos pais que desejava mudar-se para a Grande Cidade, o que estes aceitaram. Na verdade de nada lhes servia levantar oposição - pois pode alguém prender o vento? E à pequena pastora, de mochila às costas, bastou declarar suavemente:
- Para a cidade, vamos!
Ao primeiro passo, o vento empurrou-a, ao segundo passo, o vento dominou-a, e ao terceiro passo, lá ia a menina de cabelos no ar, os braços abertos, as pernas movendo-se em largas passadas pelos verdes campos fora.
Chegada à Grande Cidade, Rosa Branca buscou acomodações em casa de uma parente de há muito saída da Aldeia. A prima Margarida recebeu Rosa Branca com agrado, mas disse-lhe que era pobre, que por isso apenas poderia dar-lhe abrigo no seu lar, com cama e roupa lavada. Quanto ao sustento, devia Rosa Branca buscá-lo fora. Havia, por isso, necessidade de que a pequena pastora arranjasse emprego.
Afoita e resoluta, a moça disse que em nada a abalava tal ideia, pois que de muito criança se habituara a labutar. E saíu em busca de trabalho.
Quando descia a Grande Avenida - uma das principais da cidade -, suavemente impelida pela mesma brisa que afagava o mármore das frontarias, Rosa Branca avistou um letreiro, dependurado de uma vitrine, que pedia para aquela loja uma empregada.
Sem hesitar, a menina entrou, e meia dúzia de palavras trocadas já se encontrava cá fora, com um lenço a tapar-lhe os caracóis escuros, um balde com água e detergente numa mão, e uma esponja na outra. Seguia-a a dona do estabelecimento, segurando um pequeno escadote e fazendo-lhe recomendações para que não caísse.
Ora cair! Como se o vento desamparasse alguma vez a sua protegida!
E, sem a ajuda da escada, Rosa Branca lavou a magnífica montra, limitando-se a dar pequenos saltos quando desejava subir um pouco mais, ou seja, alcançar o cimo do vidro, uns bons metros acima da sua cabeça.
É claro que tal cena tinha necessariamente de chamar a atenção dos transeuntes. Estes, que em grande número desciam a avenida, no afã das compras, detiveram-se junto àquela loja, perante a moça de faces rosadas que, em largos gestos dos braços e das pernas, polia os vidros, ora em baixo, junto ao empedrado da calçada, ora no cimo, erguendo-se no ar como que por magia!
Para encontrar a explicação do que julgavam ser um truque ou uma ilusão de óptica, as pessoas começaram a entrar no estabelecimento, a fazer perguntas, e a comprar.
Depressa a proprietária da loja, Dona Dália, se apercebeu da fantástica qualidade de Rosa Branca, e passou a mandá-la para a entrada, para lavar as vitrines e as portas, assim atraindo enorme clientela.
Aproximava-se o Natal, e a Dona Dália vendia como nunca. Estava satisfeitíssima, e pôde mesmo aumentar o ordenado da sua jovem empregada, que também não cabia em si de contente. Afinal de contas, ganhava o necessário ao seu sustento, e conseguia ainda contribuir para as despesas da sua prima Margarida, sobrando-lhe um pecúlio que enviava para os pais, lá na Aldeia.
Passados o Natal e a euforia das Festas, que haviam transformado a Grande Avenida num verdadeiro salão recoberto de enfeites luminosos de várias cores e inundado de gente e música, começou Rosa Branca a sentir-se entediada do serviço. Na verdade, para quem dantes voava, montanha acima, montanha abaixo, e corria pelos campos fora, desafiando as nuvens, limitar-se agora a subir uns quantos metros tornava-se deveras aborrecido.
Também, diariamente eram apresentadas à pequena novas propostas de emprego, pretendendo dar uso à sua estranha capacidade. Grandes empresas desejavam contratá-la como paquete, para dentro dos arranha-céus de cinquenta andares transportar rápida e eficazmente documentos importantes, sem necessidade de utilizar os sempre superlotados e morosos elevadores. Circos famosos pretendiam exibi-la em magníficos espectáculos, atravessando em gigantescas passadas as enormes tendas de lona...
Só que nenhuma destas ofertas Rosa Branca considerava, pois sabia - e só ela o sabia! - que os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, não voavam, qual pássaro: era, sim, o vento que a tomava e levava. Debaixo de um telhado ou abrigada entre paredes, a menina era exactamente igual a todas as outras, nada de especial a diferenciando.
Pensava Rosa Branca no rumo a dar à sua vida, quando certo dia a Dona Dália apareceu na loja a chorar. O seu filho Jacinto estava muito doente, e os médicos afirmavam que apenas o poderia salvar um remédio muito raro, existente numa única cidade do mundo: a Cidade do Nascer do Sol, que ficava exactamente do outro lado da Terra. Dada o urgência em conseguir o medicamento, e a distância a que este se encontrava, parecia improvável que o rapaz tivesse salvação. Mesmo de avião, a viagem de ida e volta levaria muitas e muitas horas, com que Jacinto não podia infelizmente contar.
Rosa Branca, perante a pobre mãe chorosa, sentiu o coração saltar no peito, enquanto os olhos lhe ganhavam um brilho especial. Havia uma solução! Só havia uma solução! Correr até à Cidade do Nascer do Sol e trazer o medicamento para Jacinto!
A menina e o vento tinham, desta vez, uma missão importante. Não se tratava simplesmente de levar carneiros para o pasto, ou de entreter transeuntes na Grande Avenida. Agora, havia uma vida para salvar!
Fixado o endereço do Hospital onde se encontrava o remédio salvador, e estudado o percurso a seguir, Rosa Branca pôs-se a caminho, arrastada pelo vento.
Pés na estrada, mochila às costas, inspirou profundamente e avançou. Logo o vento correspondeu assobiando, primeiro muito ténue, muito terno, depois fortalecido em rajadas sibilantes que faziam a menina galgar extensões enormes, impensáveis, ultrapassando planícies e rios a que se seguiam montanhas e cordilheiras, oceanos e continentes. Os alísios ajudavam, correntes intensas tornavam-se cúmplices na aventura - a menina seguia de vento em popa. E se das estradas se aproximava, os condutores ficavam a observá-la, boqueabertos perante os seus cabelos ao vento, o seu olhar fito no horizonte, os seus pés velozes mal tocando o chão.
Rapidamente, Rosa Branca atingiu a Cidade do Nascer do Sol, encontrou o Hospital, tomou em suas mãos o medicamento precioso e guardou-o cuidadosamente na mochila. Sem se deter, acenou adeus aos doentes que haviam acorrido às janelas do edifício e, sorrindo, lhe desejavam um bom regresso. Célere, murmurou:
- Amigo vento, regressemos agora!
Logo o vento, para espanto de todos - e principalmente dos marinheiros que na baía orientavam as suas velas -, logo o vento mudou de feição, passando a soprar na direcção da Grande Cidade. E a moça, abrindo os braços, reiniciou passadas imensas pelo ar.
- Obrigado!
Muito conversaram Rosa Branca e Jacinto, e a pastora confidenciou ao rapaz o seu segredo. No cimo do monte, observando juntos a imensidão dos céus e os cúmulos enormes que avançavam, tridimensionais, brancos e magníficos, Jacinto sentiu também o vento no interior de si. E mais não foi necessário para que de mãos dadas viajassem os dois, cheios do ar puro das alturas, tão majestosos como as nuvens do céu.
Agora vivem em África, onde se dedicam a auxiliar as populações pobres e isoladas. Transportam e distribuem notícias, livros, alimentos, água e medicamentos. Nas escolas e hospitais sitos nos mais recônditos locais do continente africano, os seus nomes soam a esperança. Pela savana são familiares as suas figuras esvoaçantes. Sem a intervenção da televisão e dos jornais, os actos de Rosa Branca e Jacinto não são dados a conhecer ao mundo, mas ficam guardados, com eterno reconhecimento, no coração das crianças, mulheres e homens a quem ajudam.
Pela tarde, brincando com o cão ou colhendo flores amarelas na montanha, todos voam com o vento!