sábado, 24 de janeiro de 2009



VOANDO COM O VENTO


Era uma vez uma pequena pastora chamada Rosa Branca, que vivia com os pais no sopé de uma montanha. De criança, haviam-na incumbido de subir ao monte todos os dias, para guardar o rebanho. E a pequenita, envolta na sua capa de lã, trepava com esforço, encosta acima, até pastagens verdes e tenras.

Ora acontece que certo dia, achando-se Rosa Branca no topo da montanha, entretida a atirar pedras ao longe, para o cão as abocanhar e trazer de volta, ouviu um som sibilante.

Olhou em redor, para baixo e para cima, e acabou por compreender que nada de visível ou tocável emitira tal ruído, pelo que o mesmo se apresentava como que originado do ar. Era o ar que falava, ou melhor, o ar em movimento: o vento.

O vento que, no céu muito azul, impelia as nuvens, pujantes e luminosas, a grande velocidade, qual cajado de pastor guiando o seu rebanho para o norte. O vento que, ao ouvido de Rosa Branca, murmurava, sussurrava, brincando-lhe com os braços e as pernas, puxando-lhe o cabelo, roçando-lhe a cara.

A menina sorriu de prazer. E logo, numa troca de sons e aragens, o vento criou uma relação amigável com a pequena pastora, ao ponto de nesse fim de tarde, de regresso a casa, montanha abaixo, sentir a garota que o vento a acompanhava e amparava na descida.

No dia seguinte, também para a subida - esta mais difícil - o vento deu o seu contributo, empurrando energicamente Rosa Branca, de tal forma que lhe bastou dar amplas passadas pelo ar, que do resto a aragem se encarregou. E em três tempos chegou às pastagens do alto.

Como se entendiam, que ideias ou correntes trocavam, não é sabido, apenas que desde então Rosa Branca deixou de se fazer transportar de carroça, carro ou camioneta, pois que voava com o vento: se queria subir, de imediato um impulso do ar a fazia ascender; se desejava descer, súbita rajada a empurrava em tal sentido - tudo por modos que as distâncias deixaram de existir e, como é costume dizer-se, do longe se fez perto.

O tempo foi passando, Rosa Branca cresceu e, dotada de tal atributo, cansou-se de permanecer na Aldeia. Disse então aos pais que desejava mudar-se para a Grande Cidade, o que estes aceitaram. Na verdade de nada lhes servia levantar oposição - pois pode alguém prender o vento? E à pequena pastora, de mochila às costas, bastou declarar suavemente:

- Para a cidade, vamos!

Ao primeiro passo, o vento empurrou-a, ao segundo passo, o vento dominou-a, e ao terceiro passo, lá ia a menina de cabelos no ar, os braços abertos, as pernas movendo-se em largas passadas pelos verdes campos fora.

Chegada à Grande Cidade, Rosa Branca buscou acomodações em casa de uma parente de há muito saída da Aldeia. A prima Margarida recebeu Rosa Branca com agrado, mas disse-lhe que era pobre, que por isso apenas poderia dar-lhe abrigo no seu lar, com cama e roupa lavada. Quanto ao sustento, devia Rosa Branca buscá-lo fora. Havia, por isso, necessidade de que a pequena pastora arranjasse emprego.

Afoita e resoluta, a moça disse que em nada a abalava tal ideia, pois que de muito criança se habituara a labutar. E saíu em busca de trabalho.

Quando descia a Grande Avenida - uma das principais da cidade -, suavemente impelida pela mesma brisa que afagava o mármore das frontarias, Rosa Branca avistou um letreiro, dependurado de uma vitrine, que pedia para aquela loja uma empregada.

Sem hesitar, a menina entrou, e meia dúzia de palavras trocadas já se encontrava cá fora, com um lenço a tapar-lhe os caracóis escuros, um balde com água e detergente numa mão, e uma esponja na outra. Seguia-a a dona do estabelecimento, segurando um pequeno escadote e fazendo-lhe recomendações para que não caísse.

Ora cair! Como se o vento desamparasse alguma vez a sua protegida!

E, sem a ajuda da escada, Rosa Branca lavou a magnífica montra, limitando-se a dar pequenos saltos quando desejava subir um pouco mais, ou seja, alcançar o cimo do vidro, uns bons metros acima da sua cabeça.

É claro que tal cena tinha necessariamente de chamar a atenção dos transeuntes. Estes, que em grande número desciam a avenida, no afã das compras, detiveram-se junto àquela loja, perante a moça de faces rosadas que, em largos gestos dos braços e das pernas, polia os vidros, ora em baixo, junto ao empedrado da calçada, ora no cimo, erguendo-se no ar como que por magia!

Para encontrar a explicação do que julgavam ser um truque ou uma ilusão de óptica, as pessoas começaram a entrar no estabelecimento, a fazer perguntas, e a comprar.

Depressa a proprietária da loja, Dona Dália, se apercebeu da fantástica qualidade de Rosa Branca, e passou a mandá-la para a entrada, para lavar as vitrines e as portas, assim atraindo enorme clientela.

Aproximava-se o Natal, e a Dona Dália vendia como nunca. Estava satisfeitíssima, e pôde mesmo aumentar o ordenado da sua jovem empregada, que também não cabia em si de contente. Afinal de contas, ganhava o necessário ao seu sustento, e conseguia ainda contribuir para as despesas da sua prima Margarida, sobrando-lhe um pecúlio que enviava para os pais, lá na Aldeia.

Passados o Natal e a euforia das Festas, que haviam transformado a Grande Avenida num verdadeiro salão recoberto de enfeites luminosos de várias cores e inundado de gente e música, começou Rosa Branca a sentir-se entediada do serviço. Na verdade, para quem dantes voava, montanha acima, montanha abaixo, e corria pelos campos fora, desafiando as nuvens, limitar-se agora a subir uns quantos metros tornava-se deveras aborrecido.

Também, diariamente eram apresentadas à pequena novas propostas de emprego, pretendendo dar uso à sua estranha capacidade. Grandes empresas desejavam contratá-la como paquete, para dentro dos arranha-céus de cinquenta andares transportar rápida e eficazmente documentos importantes, sem necessidade de utilizar os sempre superlotados e morosos elevadores. Circos famosos pretendiam exibi-la em magníficos espectáculos, atravessando em gigantescas passadas as enormes tendas de lona...

Só que nenhuma destas ofertas Rosa Branca considerava, pois sabia - e só ela o sabia! - que os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, não voavam, qual pássaro: era, sim, o vento que a tomava e levava. Debaixo de um telhado ou abrigada entre paredes, a menina era exactamente igual a todas as outras, nada de especial a diferenciando.

Pensava Rosa Branca no rumo a dar à sua vida, quando certo dia a Dona Dália apareceu na loja a chorar. O seu filho Jacinto estava muito doente, e os médicos afirmavam que apenas o poderia salvar um remédio muito raro, existente numa única cidade do mundo: a Cidade do Nascer do Sol, que ficava exactamente do outro lado da Terra. Dada o urgência em conseguir o medicamento, e a distância a que este se encontrava, parecia improvável que o rapaz tivesse salvação. Mesmo de avião, a viagem de ida e volta levaria muitas e muitas horas, com que Jacinto não podia infelizmente contar.

Rosa Branca, perante a pobre mãe chorosa, sentiu o coração saltar no peito, enquanto os olhos lhe ganhavam um brilho especial. Havia uma solução! Só havia uma solução! Correr até à Cidade do Nascer do Sol e trazer o medicamento para Jacinto!

A menina e o vento tinham, desta vez, uma missão importante. Não se tratava simplesmente de levar carneiros para o pasto, ou de entreter transeuntes na Grande Avenida. Agora, havia uma vida para salvar!

Fixado o endereço do Hospital onde se encontrava o remédio salvador, e estudado o percurso a seguir, Rosa Branca pôs-se a caminho, arrastada pelo vento.

Pés na estrada, mochila às costas, inspirou profundamente e avançou. Logo o vento correspondeu assobiando, primeiro muito ténue, muito terno, depois fortalecido em rajadas sibilantes que faziam a menina galgar extensões enormes, impensáveis, ultrapassando planícies e rios a que se seguiam montanhas e cordilheiras, oceanos e continentes. Os alísios ajudavam, correntes intensas tornavam-se cúmplices na aventura - a menina seguia de vento em popa. E se das estradas se aproximava, os condutores ficavam a observá-la, boqueabertos perante os seus cabelos ao vento, o seu olhar fito no horizonte, os seus pés velozes mal tocando o chão.

Rapidamente, Rosa Branca atingiu a Cidade do Nascer do Sol, encontrou o Hospital, tomou em suas mãos o medicamento precioso e guardou-o cuidadosamente na mochila. Sem se deter, acenou adeus aos doentes que haviam acorrido às janelas do edifício e, sorrindo, lhe desejavam um bom regresso. Célere, murmurou:

- Amigo vento, regressemos agora!

Logo o vento, para espanto de todos - e principalmente dos marinheiros que na baía orientavam as suas velas -, logo o vento mudou de feição, passando a soprar na direcção da Grande Cidade. E a moça, abrindo os braços, reiniciou passadas imensas pelo ar.

Ao entardecer Rosa Branca chegava à Grande Cidade e entregava à Dona Dália o remédio, que esta de imediato dava de beber a Jacinto. Com o olhar brilhante e as faces coradas, o rapaz engoliu o líquido dourado que a menina trouxera. Depois, com os olhos, muito escuros, pousados em Rosa Branca, murmurou apenas:

- Obrigado!

Toda a noite Rosa Branca permaneceu junto de Jacinto, assistindo o seu sono inquieto. O vento assobiava, insistente, pelas frestas das janelas e das portas, com uma energia colossal. Finalmente, pela manhã, Jacinto acordou sem febre, sorriu e tomou o caldo que a mãe lhe preparou. O pior já passara - Jacinto estava salvo!

Cansada mas tranquila, Rosa Branca saíu para o sol e deixou-se levar pelo vento até casa. Surpreendida, viu-se rodeada de pessoas que a acompanhavam no seu trajecto. Saudavam-na, agradeciam-lhe, esboçavam festas ou pedidos. Outros, tiravam-lhe fotografias e imploravam autógrafos. Em suma, Rosa Branca tornara-se famosa pelo seu feito.

O vento amparava-a como sempre, mas agora muito meigo, quase apagado, consciente do seu cansaço, do seu espanto, lendo-lhe no olhar o tal brilho que ninguém mais sabia explicar.

Durante os dias seguintes, os jornais, a rádio e a televisão não se cansaram de apregoar as estranhas qualidades de Rosa Branca, que correra e voara qual foguete espacial. Todos queriam entrevistas, uma resposta, uma palavra que fosse, um sorriso. Rosa Branca, a pequena pastora, era um fenómeno!

Cansada de tanto alarido, a moça regressou à Aldeia dos pais. Junto à montanha reencontrou, cheia de felicidade, o seu cão, as ovelhas, as ervas mais verdes e tenras do alto. Ali tudo permanecia como dantes. Ao alvorecer o galo cantava. Logo cedo havia que tratar dos animais. Nas subidas pela encosta, com o rebanho e o vento, encontrava renovado prazer.

Certa tarde, andava Rosa Branca pelos campos e sentiu a chegada de um automóvel. Nele vinha Jacinto, já completamente recuperado da doença. Queria agradecer-lhe a sua cura. E a moça levou-o a passear pelas encostas da montanha e junto ao ribeiro.

Muito conversaram Rosa Branca e Jacinto, e a pastora confidenciou ao rapaz o seu segredo. No cimo do monte, observando juntos a imensidão dos céus e os cúmulos enormes que avançavam, tridimensionais, brancos e magníficos, Jacinto sentiu também o vento no interior de si. E mais não foi necessário para que de mãos dadas viajassem os dois, cheios do ar puro das alturas, tão majestosos como as nuvens do céu.
Para Rosa Branca e Jacinto o futuro estava traçado. O vento unira-os e nada podia separá-los. Casaram na Aldeia, numa festa que reuniu a família e os amigos. Depois partiram, felizes.

Agora vivem em África, onde se dedicam a auxiliar as populações pobres e isoladas. Transportam e distribuem notícias, livros, alimentos, água e medicamentos. Nas escolas e hospitais sitos nos mais recônditos locais do continente africano, os seus nomes soam a esperança. Pela savana são familiares as suas figuras esvoaçantes. Sem a intervenção da televisão e dos jornais, os actos de Rosa Branca e Jacinto não são dados a conhecer ao mundo, mas ficam guardados, com eterno reconhecimento, no coração das crianças, mulheres e homens a quem ajudam.

De quando em quando Rosa Branca e Jacinto voltam à Aldeia, com os seus filhos, Jasmim e Violeta.

Pela tarde, brincando com o cão ou colhendo flores amarelas na montanha, todos voam com o vento!


Ilona Bastos

domingo, 18 de janeiro de 2009


Não sei se mais aprecio o veludo acolchoado dos pinheiros mansos a cobrir a encosta, se a desenvoltura flamejante dos pinheiros bravos a estamparem-se contra o eucaliptal.

Só sei que uma súbita emoção me toma quando avisto o verde escuro das copas contra o céu azul soberbamente nublado.

Deixem-me o verde, deixem-mo, depois de tudo ir.
Deixem-me os ramos dos pinheiros, a seiva,
O mato, as sebes, quando for hora de partir.
Deixem-me os vários tons, as formas,
As mais incautas plantas, mesmo se tudo ruir.
Deixem-me o verde, somente o verde, deixem-mo
Até que seja tempo de florir.

Mesmo que azul não haja, deixem-me o verde.
Mesmo que a luz se apague, deixem-me o verde.
Mesmo se há choro e lama, deixem-me o verde...

.É ali, naquele recanto, que eu vou esconder-me.
É ali, junto à erva fresca e orvalhada,
Que eu vou perder-me.

Dali farei o meu mundo. Ali reinarei, soberba.
E não me sigam, não me procurem, não me encontrem.
Ali, ali estarei e ficarei, feliz.


IIona Bastos