sábado, 30 de agosto de 2008


Compreendo a satisfação dos que pensam ter encontrado, na leitura de textos estrangeiros, na visita a solos estranhos, alguma pista do que é a Verdade.
Mas, no meu íntimo mora a convicção de que tanto a encontrarei a ela – à Verdade – nestas ruas familiares da cidade amada, como em quaisquer outros locais distantes.
Não o fez Fernando Pessoa, sem quase sair de casa?
A Verdade encontra-se tanto nas prelecções elaboradas do sábio de Oxford, como no discurso chão do agricultor alentejano. Tanto nos Campos Elísios ou no Tibete, como nas pedras molhadas da rua das traseiras.
Só é preciso saber vê-la, saber lê-la, saber escutá-la. E se a não encontrarmos aqui, não a encontraremos em mais lado nenhum, com certeza.
Compreendo, também, o encantamento perante a inteligência revelada pelos tais sábios estrangeiros. Nada me é tão agradável como o odor da inteligência: da palavra superiormente dita, do raciocínio lucidamente delineado, do clima supra humano que se gera quando a inteligência mostra os seus traços, exibe as suas formas, revela o seu corpo! Cria-nos a ilusão de que nos encontramos mais próximos da Verdade!
Mas trata-se de mera ilusão – agradável, doce, deliciosa ilusão!

Pequenas centelhas, aqui e ali, inesperadamente, trazem-nos à vida: ontem, imprevisivelmente, a “Janela indiscreta”, de Alfred Hitchcock; hoje, Sonnenblummen”, de Manfred W. Juergens.
Contrariamente ao que muitos pensam, a Arte é essencial à nossa sobrevivência.

Que estranha, mas bela, visão!
As folhas jovens, de um verde pálido (perfeitos, os recortes das suas tenras faces), espalhadas profusamente pelo empedrado negro.
Se não houve vento, se não houve chuva, se o Outono vem longe, como se compreende este cenário belo mas inusitado?

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Ilona Bastos

quarta-feira, 27 de agosto de 2008


Perfeitos, ainda há pouco, o vento e o sol transformam-se por momentos: sobrepondo-se o primeiro, enfraquecendo o segundo.
Mas, é breve, este momento de desconforto, e logo regressa a harmonia.
Retorna o vento ao seu lar – talvez a copa desta frondosíssima árvore que diante de mim se ergue e se espraia, imponente na dimensão do seu tronco, poderosa nos movimentos dos seus ramos e folhas…
Quanto ao sol – é o sol das seis e meia de uma tarde de Agosto!
Um e outro, vento e sol, aliam-se na criação deste cenário fantástico, em que a areia brilha, calma e clara, e as árvores, nos tons verdes e escuros próprios de jardim romântico, prometem simultaneamente sossego e aventura, ousadia e segurança.
Para quem está no jardim agora, não existe outro mundo que não seja este. Diluídos na sinfonia das folhas agitadas, os ruídos dos automóveis apagam-se, as vozes atenuam-se. Não há senão paredes palacianas e chilrear de pássaros, e espantadas frases titubeadas por uma criança. Se o cão ladra, a ave responde. E o vento, poderoso, vocifera, mas cala-se de novo. Movimenta-me o cabelo, fazendo crer que é carícia. Volta-me as páginas do livro, mas recoloca-as no seu lugar, como se o fizera por engano. Encaminha as folhas caídas, pelos carreiros fora, qual brincadeira inocente. E os ramos acenam, soberbos. O sol sorri, tudo desculpando. É folguedo de juventude, este desacato do vento a transformar a paisagem.
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Ilona Bastos

terça-feira, 26 de agosto de 2008


Esta manhã praticamente não vi ninguém, para além de ti, que me beijaste meio adormecida.
Quando levei o cão a passear, havia apenas um homem a subir a rua, assobiando, e uma mulher, ainda jovem, a sair de um automóvel e a dirigir-se ao salão de beleza, no edifício da esquina.
De resto, só o cão - com quem converso como se de uma criança se tratasse. E o cão responde como uma criança. Olha-me com o seu olhar meigo, ora atento, ora espantado, ora desconfiado.
O cão também tem desconfianças, sublinhadas pelo subir das orelhas, pelo abrir da boca, expectante, pela pose do corpo, em sentido, pelo pescoço voltado para cima, para mim, como quem pergunta: “A sério?!!”


Agradam-me estas ruas, mornas e desertas, inundadas de sol!
Não sei se mais aprecio o silêncio, de sons e movimentos, se a vaga nostalgia do bulício, que subjaz à quietude da tarde.
Até o ronronar do autocarro, a meu lado, e o olhar perdido dos passageiros, voltados para a janela, ou o arrancar súbito dos automóveis quando o sinal se torna verde, tudo me causa uma sensação de agradável descontracção estival.
Como as sombras das árvores, são plácidos os poucos cidadãos que pelo passeio se deslocam, alongando passadas calmas e metódicas na calçada.
Só a brisa fresca, ao fim da tarde, vem acordar as ruas adormecidas. Agitam-se, então, as copas, - por vezes com violência -, e os ramos, ao brilho da luz dourada, dançam freneticamente, embravecidos.
Pouco depois, chega a hora do crepúsculo - o vento amaina, a tranquilidade é total. E das janelas ouvem-se os ruídos de vozes e de bater de tachos e panelas, na preparação do jantar.
É assim, o mês de Agosto na cidade.
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Ilona Bastos

segunda-feira, 25 de agosto de 2008


Junto ao caixão do filho, a mãe desmaiou. Pediram ajuda a um médico que acompanhava o velório. Procuraram água, uma bolacha, um chocolate, algo doce que pudesse reanimá-la. E, aparentemente, tudo se compôs com a mãe. Não com o filho, que jazia morto no caixão. Na mãe, a morte aninhava-se por dentro, já que a senhora parecia viva quando se aproximou cambaleando, chorando em desespero, junto à porta da casa mortuária. Morreu o filho de quarenta anos e levou consigo a alegria da mãe. Como aquelas viúvas sempre tristes, vestidas de negro – assim vive a mãe que perdeu o filho. E só nos netos a vida continua.


Perdoa-me as palavras que te disse, que as disse em desespero total.
Perdoa as palavras mais fortes e magoadas. Perdoa as mais gritadas, angustiadas. Perdoa as cortantes, estranguladas. As que da minha boca partiram como facas sobre mim própria lançadas. Perdoa-me as palavras que te disse, que as não disse por mal. Sabes que não foram sentidas. Acredita que não foram queridas. Perdoa-me, que foram ditas apenas porque temidas, nesse momento fatal…

Múltiplos alertas lançam a mensagem de iminência de crash no sistema. Spywares e outro software altamente nocivo parecem ter invadido o nosso computador. Sucedem-se os avisos, assustadores! Agora é um software malicioso que procura alterar o sistema…
Será mesmo isso ou trata-se apenas de rivalidade entre antivírus? É que o Panda está a analisar o sistema e o XP antivírus põe-se aos gritos: “Socorro! Socorro! Vem aí o lobo!”
Vinte e dois vírus detectados, dezasseis desinfectados, cinco com o nome mudado – anda um à solta!
Mas o verdadeiro crash deu-se antes do jantar, contra a porta do armário da cozinha, aberta a meio caminho entre a banca, onde cortava morangos e os cobria de açúcar, e a sala, onde o telefone berrante por mim chamava, insistente! Um momento de precipitação e deu-se o encontro dramático entre o meu crânio e o contraplacado do armário… Ai, Ai, Ai, ainda me dói a cabeça… e o XP continua: “Perigo de crash! Ameaça de crash!”.
Era mesmo o que me faltava, às duas e quarenta e três da madrugada!
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Ilona Bastos

domingo, 24 de agosto de 2008


Trauteio, canto, sorrio, deixo as lágrimas correr sem vergonha.
Queria aprender piano para tocar Chopin. Quero agora tocar guitarra, para dedilhar “Tocando em Frente” e cantar as massas e as maçãs
As palavras, em si, são só palavras: quando ditas, meros sons, quando escritas, intrincadas contorções de traços, rectos e curvos, sobre o papel. Nada mais! Se pronunciadas ou escritas aleatoriamente, mal suscitam reacção. Mas, se conjugadas, transformam-se em imagens, ideias, pensamentos, emoções. Quando utilizadas com talento especial, como o fazem os escritores e os poetas, conseguem mais do que tudo atingir-nos directamente na alma que, assim exposta, se sente tocada no mais fundo de si mesma.
Que mistério, este, o das palavras!
Que mistério, o da natureza humana e do funcionamento deste cérebro que recebe, processa, regista, reage ao estímulo das palavras soberbamente trabalhadas, e as reenvia para o mais íntimo de nós, afectando-nos como dificilmente podemos ser afectados por qualquer outro estímulo!
Referi anteriormente o Filho-da-Estrela, de Óscar Wilde, história que tanto me comoveu e perturbou na infância, e cuja leitura ainda hoje me toca profundamente.
O mesmo efeito exerce sobre mim este “Tocando em Frente”…
Como? Porquê? Responderá, afinal, este poema, às mais profundas questões que sobre a natureza humana colocamos? Será tudo, afinal, tão complexamente simples?
Mas há ainda a música – não o esqueçamos. E eis outro mistério a desvendar: os sons básicos, primitivos, despertam em nós sensações básicas, de medo, espanto… mas, quando mais elaborados – como, por exemplo, o canto dos pássaros que agora escuto, ou a música criada pelos Homens – têm um efeito equivalente ao das palavras.
Associadas, palavras e a música, conseguem, no caso de “Tocando em Frente”, emocionar-me tão surpreendentemente que suspeito encontrar nelas muito mais do que simples palavras, muito mais do que simples música…
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sábado, 23 de agosto de 2008

Maravilhoso, o espectáculo das nuvens a vogar sobre a planície! Distraem-me da leitura, atraem o meu olhar para a janela, e fascinam-me. Não mais consigo afastar os olhos destas fantásticas manchas tridimensionais, em variados tons de crescente luminosidade, entre o cinzento chumbo e o branco translúcido. Movo-me à velocidade do comboio, mas também elas se movem, as nuvens, numa marcha solene, imponente, misteriosa. São espantosos armazéns de água, que pelos céus se deslocam, distribuindo o precioso líquido pela terra.
Poderá este sistema fantástico funcionar ao acaso? É tão difícil concebê-lo e aceitá-lo! A ideia de Deus vem-nos também desta colossal imagem que, se melhor pensada, reforça o espanto, o encantamento, a fé!
Nesta Natureza grandiosa, não vejo maldade, ódio ou desespero. Apenas beleza, inteligência, perfeição! O verde da vegetação, o voo das aves, o azul magnífico do céu, o vermelho incomparável das papoilas, o laranja dos frutos a espreitar de frondosas copas, a arte rendilhada dos ramos das árvores, a quietude, a vastidão, a sombra das montanhas a desenhar o horizonte, o brilho da erva, o lilás da alfazema, a elegância dos canaviais, o adorável recorte de um súbito monte, a maciez das encostas acastanhadas, o luzir de um ribeiro…
Tudo, tudo nesta Natureza é tão belo, harmonioso, inteligente!
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Ilona Bastos




Gosto de fotografar flores minúsculas. De retratar o microcosmos magnífico das suas corolas, a preciosidade dos seus estames, a arquitectura sublime das suas pétalas. Nelas mergulho, socorrida da web cam, e amplio - até que meus humanos olhos se extasiem – o impressionante universo que é a flor – aquela pequena e aparentemente simples flor silvestre, escondida na margem do canteiro.



Surpreendentes, estas espertitas flores amarelas. Ainda há pouco tão vivas e atentas, abertas ao sol da manhã, e agora subitamente fechadas, adormecidas, negando-se à lente que para elas volto, inquisitiva…



Digam-me, digam-me que esta imagem não tem encanto! Direi que mentem. Como não admirar os traços, as dimensões, os tons desta flor que no fundo branco se estampa, como primorosa aguarela antiga! O realce das pétalas, nos seus sombreados e texturas incomparáveis! E a pincelada delicada, verde água! E o amarelo obscurecido dos estames! Como não admirar esta preciosidade! Como não exultar perante o seu brilho! Não, não me digam que esta imagem não tem encanto!


Perto das oito horas, inesperadamente, o sol começou a brilhar e, que delícia, logo um sorriso se instalou em mim. Grato presente, antes do anoitecer, após um dia chuvoso e nublado.

Ilona Bastos


Gosto do pormenor dos pombos a voar sob a cobertura, a sobrevoar as camionetas, a esquivar-se aos pilares, a empoleirar-se - olhar curioso lateral - na armação em ferro pintado de verde sobre a qual assenta a estrutura do telhado.
Agrada-me o aspecto semi-vazio da estação, os estores das lojas ainda corridos, a contenção nos gestos dos passageiros que esperam a camioneta das 9,45 para a Guarda, e que se levantam, num movimento tenso, quando o veículo se aproxima rapidamente e estaciona no cais de embarque.
Aprecio este momento em que estou só, rodeada de malas (das quais, reconheço, me esqueci perigosamente por momentos, enquanto escrevia os últimos parágrafos; não agora, que o meu olhar adeja sobre o banco e a bagagem).


Como um grande abraço que me envolve, a música de Mozart aconchega-me o coração! Comovem-me os seus afagos, deliciam-me as suas carícias, alegram-me as suas variações! Em cada frase, acorde, sustenido, estremeço, respiro, me encanto, vivo! Nada mais me distrai, me ocupa, me preocupa!


Aqui, da varanda sobre a praia, observo o mar, a linha ténue que o separa do céu, e acompanho o voo largo das gaivotas magníficas. Imagina tudo isto ao som de “The magic forest” e de “Sarabande”!
Visualiza como o voo se transforma em dança e o agitar das palmeiras ao vento assume formas de bailado. Fabuloso!
E que maravilhosa esta Internet que me permite transmitir-te o encantamento deste som que me eleva ao nível das aves e me transporta nas suas asas sobre o oceano...

Ilona Bastos

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(Carla Baptista Alves, World Music for Babies)

sexta-feira, 22 de agosto de 2008


Foi bom regressar, embora o cansaço subsista. Mas não há que hesitar. Hoje, como ontem e amanhã – se Deus quiser – há que repetir os mesmos gestos, seguir a mesma via, sorrir os mesmos sorrisos, debitar as mesmas palavras, dar os mesmos passos.
O cão não se cansa de ladrar à porta, o elevador não se cansa de produzir os mesmos ruídos ao fechar da porta, a porta do quarto não se cansa de vibrar da mesma forma, resistente à aragem que sob si desliza, entrada pela janela, com destino ao terraço. A porta sabe que não pode fugir aos movimentos repetitivos, mas sente que por si muitos passam, e que um lado é diferente do outro, e que de um lado vem a luz e do outro a escuridão… e que o importante é a passagem!
Porém, eu canso-me. Hoje, particularmente, que dormi poucas horas, entregue ao furor de enviar para o concurso um antiquíssimo poema. Um pouco de entusiasmo pela vida sempre me compensou...


Propositadamente, não liguei o rádio. Tão fragmentados estão os meus pensamentos, que poderia a música espalhá-los, em cacos, pelo quarto.


Não sei mais o que fazer em relação a esta minha tendência para a cacofonia – será patológica? E contagiosa?

Estou derreada, esvaziada, deserta por uma boa refeição. Pior que o estômago, o meu cérebro está esgotado. Uma faixa de sol corre pelo assento e toca-me o ombro, o casaco, a perna. Dá-me alento, este sorriso atrevido do astro rei.
“Parece que quanto mais caro está o combustível, mais se utiliza o automóvel!”
“Vá-se lá perceber…”
Subitamente, uma chuvada perfeitamente geométrica (ficou a paisagem riscada, na diagonal, com longas e elegantes rectas) desabou sobre nós. Depois, uma inesperada mudança do vento tornou as paralelas verticais. Finalmente, tão espantosamente como chegara, a chuva partiu. E agora, que desço à rua, caminho saltitante ao sol – limpo o ar, lavada a calçada, desanuviado o meu pensamento.
O verde brilhante da folhagem balança ao vento. Amo o verde!

Continuo cansada, e ligeiramente desiludida. Claro que não poderia ser tudo perfeito, ou parecer perfeito (o que implicaria a total imperfeição, de acordo com a minha teoria dos contrários).
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Ilona Bastos

quinta-feira, 21 de agosto de 2008


Livre, leve, fremente, feliz – assim desperta o meu corpo pela manhã! Rebolo-me entre os lençóis, salto, subo a persiana e anseio pelo jorro da água quente do duche. Agradeço este acordar alegre, sentada na beira da cama, com as minhas anotações. Espero a minha vez de furar o casulo e voar como borboleta. Respeito as precedências, espreitando o relógio, consciente de uma música vaga, provavelmente oriunda do apartamento ao lado. Passam automóveis e eléctricos. De lá de dentro vêm os sons em certa medida já esperados, mas que em todo o caso contrariam a minha vontade. O ladrar longínquo do cão e a voz, inequívoca, da vizinha de baixo, no seu lamento continuado…
Vai, vai, vai tomar banho, para que possa, também eu, prosseguir o meu caminho. Levanta-te, prepara-te para sair – tens onde estar às 10 horas, e eu quero seguir a minha vida!
Abro a boca, com sono, e o som da porta da casa de banho a fechar-se mostra que os meus apelos, apesar de mudos, foram ouvidos. Volto a bocejar, ainda com sono, agora desejosa de um café.
Mas, antes, todo o ritual será seguido.


Que lindo, que lindo o seu olhar azul de menina pequenina.
E as bochechinhas brancas! E os caracóis sedosos! Ao colo da avó, estende os bracitos ao vento.
Quer a chucha. Quer dormir.
Os olhos maravilhosos pestanejam. Esconde a carinha entre as mãos. E agora parece que vai chorar, mas não chora – suas pupilas suspensas das palavras da senhora de brancos cabelos, que lhe fala, carinhosa.


Procurei-te, procurei-te sem te encontrar. E, afinal, estavas tão perto…

Importante foi o odor forte a clorofila, o vento a balançar os ramos, as nuvens molhadas no céu, a ameaçar tempestade.
Depois, tudo amainou. Primeiramente, o cheiro, que se apagou, como por encanto, das minhas narinas. E do vento, nas árvores, restou o som chiado dos troncos a ranger nas amarras (árvores jovens, ruído a mar…). Finalmente, dois vultos silenciosos, parados na estrada, o meu passo apressado, o aroma súbito a tabaco de cachimbo e a maré de recordações que me faz soçobrar… Conseguiremos, sequer, pensar para além do politicamente correcto? Ou tanto nos cerceia a “verdade” actual, defendida exaustivamente pelos media – que chegam ao ponto de humilhar publicamente quem reclame uma posição contrária – que tememos aproximar-nos doutras águas, doutras correntes, doutros pensamentos?
Ironicamente, a “verdade” dos media muda de um dia para o outro. Mas a arrogância persiste. É sempre lógica e evidente a tese imposta no momento, e quem não alinhar nas sucessivas ondas e marés acaba por se afogar.
Mas, agora, que me encontro na margem do lago, que avisto um marinheiro a içar suas velas, tomar o leme e seguir linearmente a sua rota, não hesito em retribuir o seu aceno, descalçar os sapatos, despir a roupa, mergulhar nas águas tépidas, nadar um pouco e sentir, com alívio, o prazer do pensamento livre.
Erro meu, comer três iogurtes de empreitada! Como surpreender-me, agora, com o que era por demais previsível? Um novo atraso na hora de dormir…
São duas e meia, e o telemóvel começa com aquele insuportável choro de que lhe falta energia. Piegas! Teve todo o dia para reclamar, e é a esta hora que se decide a requisitar a minha atenção! Obriga-me a levantar da cama, a procurar sofregamente o carregador, a ligá-lo à corrente, antes que te acorde, meu amor.
Dormes, agora, de costas voltadas para mim. Vejo-te o cabelo negro e farto, o côncavo da orelha e parte pequeníssima da bochecha. As tuas costas amplas expandem-se e contraem-se com a respiração, acompanhando o ressonar leve que agora te oiço.
Quanto tempo terei de esperar que o telemóvel carregue o suficiente para não nos incomodar durante a noite?
De lá de fora, chegam-me os ruídos da camioneta de recolha do lixo, que começa a afastar-se gradualmente! Estes barulhos sobressaem familiarmente no silêncio da noite.
Gosto do silêncio, e gosto deste sons reconhecíveis e controlados. E abro novamente a boca, com sono.

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A ideia básica é colocar a cabeça a funcionar.
Posiciono-me diante da chávena de café, rasgo e inclino o pacote de açúcar. Com estudada displicência dobro a embalagem vazia e debruço-me sobre a mesa. Começo a escrever.
Já o aroma do café me chega às narinas, enquanto a superfície acastanhada vacila no momento em que escrevo empenhadamente estas palavras no bloco aberto sobre a mesa de aço inoxidável. Largo a caneta para pegar na colher com que vou mexer o café. Largo-a depois, a ela, para retomar a caneta. De uma assentada, bebo dois goles, arrepio-me com o sabor forte e com o vento que me despenteia o cabelo.
Mais invasivas são, porém, as vozes que me chegam do interior da pastelaria. De uma só vez bebo o resto do café (é tão pouco, afinal!) e ausculto-me conscienciosamente, procurando detectar algum efeito que a preciosa bebida tenha induzido no meu raciocínio (não esqueçamos, trata-se de pôr a cabeça a funcionar…).


Abrandar, rodar o volante à esquerda, ultrapassar, acelerar.
Tic, tec, tic, tec. Um pombo a aterrar no passeio, o jardim botânico. Estão 22º C. Abre o sinal – bem mais rápido do que esperava -, nova pausa junto ao restaurante chinês.
O travão de mão a ranger. Ao lado, o soluçar entrecortado de um táxi. Depois, a curva junto ao hotel, o prego a fundo, o peão inusitado, a travagem. Seguindo caminho. O avião. Na paragem, sentado, agarrado à pasta (ao portátil?) o rapaz de barba.
Retomamos caminho, arrancamos para ficar junto ao portão do jardim. A meio da rua, mais ou menos. Exactamente, a meio da rua.
Pontualidade britânica. Apenas a minha, contudo.
Volto a retirar o bloco da carteira, para escrever. Fala-se de chuva, em passos sublinhados pelo soar de sapatos, de salto alto, de senhora elegante.
Eu escrevo como se não existisse. Aqui. À entrada do jardim, por onde muitos passam. Os pássaros chilreiam, lá para dentro do paraíso que esta entrada, à minha esquerda, promete. O aroma das plantas chega até mim. Pela visão periférica passam raparigas de jeans, jovens de mochila às costas, senhores de fato, óculos e cabelo branco, que cantarolam. Passam grupos. Grasnam os patos selvagens. Turistas vagueiam. Homens elegantes, casais sofisticados entram. E eu, aqui, sem conseguir parar de escrever.
Penso, escrevo, escrevo, penso.


Chegou a hora de trabalhar.
Abri a janela e arregacei as mangas. Tomei um novo café. Acocoro-me e retiro um dossier do armário. É agora!


Espero-te agora, como antes.
Surgirás no toque de um telemóvel, ou no golpear forte de algumas campainhadas, à porta? Não sei! Expectante, vou-me debruçando uma vez mais sobre o papel, a mão aberta apoiada na secretária, a caneta em riste a retratar o momento.
Do sentimento de há pouco, nada restou. Outras ideias, outras conversas o dissiparam. E o perfume extraído de um minúsculo frasco que transporto na carteira, associado ao pentear do cabelo e ao compor das roupas, prepara-me para enfrentar, uma vez mais, o mundo.
Entretanto, espero-te, como disse, expectante!
Releio as páginas anteriores pela primeira vez. Curiosa, desejo saber qual o efeito criado. Farão algum sentido?
Para mim, evidentemente, fazem todo o sentido, mas surpreendem-me. Ali, junto ao portão do jardim, estava feliz e descontraída. A escrita não reflecte, contudo, esse estado de espírito.
A narrativa – se assim lhe posso chamar –, tive de a interromper bruscamente, quando chegaste.
O mesmo que agora, na verdade, pois que o toque do telemóvel e a tua voz me chamam uma vez mais.

Esperas-me!

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Ilona Bastos