quinta-feira, 9 de dezembro de 2010


NEVOEIRO


Lembrando uma paisagem escandinava
Desenham-se, além dos vidros da janela,
Os traços suaves dos ramos de pinheiro,
Esbatidas manchas de quadro em aguarela,
Por entre o esbranquiçado frio do nevoeiro.

Também, mais próxima, desmaiada, a relva
Se distancia, neutra, na densa neblina,
E o fundo baço, que esconde o arvoredo,
Envolve o céu e a vida, em leve musselina.

Só um vulto, esbelto, vem descendo, ledo,
A longa escadaria, que o nevoeiro adoça,
E uma gaivota livre, de asas prateadas,
Planando baixo, os seus cabelos roça.

Agora, vejo as nuvens, rasas e molhadas,
Correrem, junto à erva, em desfilada,
Afugentando o véu, os seres, a quieta paz
Desta atmosfera idílica, encantada.

Soprando velozmente, vem o vento e faz,
Agreste, forte, intenso, espantar a magia
Do nevoeiro imenso, prenhe de mistério,
Que a manhã cobriu, neste invernoso dia.

Então, no céu, o azul retoma o seu império,
O sol inunda a relva, a rua, todo o parque,
Regressam vozes, passos, gente radiosa,
Da vida, a cor, o brilho, a infinita arte...

E, na transparência pura, gloriosa,
Desta pintura bela, perfeita em limpidez,
Na Natureza rica, na vívida Criação,
Esboça-se, com espantosa nitidez -
A imagem de Deus - sublime Revelação!


Ilona Bastos

domingo, 28 de novembro de 2010

O POEMA QUE SE SEGUE

  
Não há que temer a Poesia,
Nem estas ideias bizarras
Que em certas horas me assaltam.

Vivo e raciocino por tentativas,
Aproximações e intuições.

Pensamentos fugazes,
Velozes, acutilantes,
Perpassam-me a mente,
De rompante, e logo
Seguem seus caminhos.

Lanço-me atrás deles, correndo,
Alcanço-os, por vezes, detenho-os,
Interrogo-os, fotografo-os, de frente,
De perfil, de um lado e do outro,
Curiosa, inquisitiva, sem sorrir.

Anoto, atenta, o que revelam,
Alvitro, sugiro, proponho,
Componho o texto e exponho-o
Neste caderno invulgar.

Largo-as, depois, às ideias,
Que dispersam livremente.

E o que sinto é ser tão leve,
Neste alívio imparável de criar,
Que levanto, brilhante, o meu olhar
Na procura do poema que se segue.

Ilona Bastos

sexta-feira, 19 de novembro de 2010


Gonzalo Torrente Ballester


"E esta história, meu amigo, é nada menos do que a seguinte: «por volta do ano mil, segundo a tradição ou certos cálculos, um cavaleiro de nome Marinho caminhava à beira-mar, quando um inesperado escorregão ou qualquer outra causa o precipitou nas alterosas vagas, das quais não teria podido livrar-se, armado como ia e trôpego na natação (não na lide, naturalmente), se não estivesse casualmente à espreita por aqueles lugares a Sereia de Finisterra, a tão sinistramente reputada, que acudiu rápida ao socorro, e que tendo visto de perto o formoso rosto e o bem trabalhado corpo do desmaiado náufrago, concebeu por ele amores tão súbitos, que o levou para a sua caverna e com ele ficou por amante durante bastantes anos; e ali teria morrido o cavaleiro de pura velhice, se não fora porque os filhos havidos do vínculo conjugal, que eram quatro, embora excelentes em artes natatórias e piscatórias, tudo ignoravam da cavalaria e da espada, pelo que seu pai pediu à Sereia que o deixasse voltar para terra e levá-los consigo para lhes dar completa educação, ao que ela respondeu que sim, que estava bem, que os levasse e os fizesse cavaleiros, mas com o anúncio e compromisso de que, cada geração, ela levaria um descendente para as suas necessidades particulares, e este destino singular reconhecer-se-ia na cor azul dos olhos ou nas escamas de peixe que o destinado haveria de ter nas coxas. E sucedeu desde então que todos os Marinho da costa, azul de olhos ou com escamas, desapareceram no mar.»"

Gonzalo Torrente Ballester, O Conto da Sereia, tradução de Miguel Viqueira, Difel, págs. 12 e 13

quinta-feira, 11 de novembro de 2010


Como Soa o Poema

Não soa o poema ao criador.
Irrompe do fundo de nenhures,
Pensamento luminoso, súbito
Na brancura do papel a derramar.

Não soa em alta voz a poesia.
Pois é ideia ágil, forte e clara,
É passo vivo ou mesmo galopante,
Que o braço move e leva pelo ar.

Não soa como som, já que é mais luz,
Corrente descendente até à mão,
Vaivém audaz do lápis no papel
Furor intenso e débil a criar.

Não soa como o fazem as tiradas,
Libertas na conversa ou no canto.
Não soa como corpo, pois é alma
Das letras e palavras faz seu pranto.

Ilona Bastos

quarta-feira, 10 de novembro de 2010


Dias Outonais

Tanto necessito de harmonia,
Que dos meus gestos faço dança,
Para que a arte torne belos
Estes dias curtos do Outono.

Limpo cada folha da palmeira
Como quem penteia os cabelos de oiro
De uma princesa donzela.

Atento, o meu olhar passeia manso
Sobre as construções passantes,
Quando em trânsito navego na cidade,
E lentos desfilam edifícios altos
Nas margens empedradas da avenida.

Prendo-me aos detalhes do mármore jovem,
Do ferro forjado da varanda antiga,
Às minúcias doces de um jardim cuidado,
À cortina em renda por trás da vidraça…

Rola-me entre os dedos a caneta prata
Sinto-a macia, em ânsias de apontar
As palavras prontas que lestas irrompem
Na tarde outonal.

Na chegada a casa, no abrir da porta,
Na entrada escura, no buscar da luz,
Imito a elegância do bailado,
Cisne encantador, fonte de candura,
Em gestos suaves que no ar desenho…

E assim se passam os dias do Outono.
Como a folha seca que ao vento se entrega
E sonhando voa, ave por segundos,
Cada vez mais alto, mais longe, mais leve,
Até que o remoinho, ao virar da esquina,
Tolha o seu caminho.


Ilona Bastos

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos



Sebastião da Gama

"Para ser professor, também é preciso ter as mãos purificadas. A toda a hora temos de tocar em flores. A toda a hora a Poesia nos visita.
"O aluno acredita em nós e não deve acreditar em vão. Impõe-se-nos que mereçamos, com a nossa, a pureza dos nossos alunos; que a nossa alimente a deles, a mantenha.
"Sejamos a lição em pessoa - que é isso mais importante e mais eficaz que sermos o papel onde a lição está escrita; e possamos dizer, sem constrangimento: «Deixai-as vir a mim, as criancinhas...»"

Sebastião da Gama, Diário, Edições
Ática, Lisboa, pág. 137

quarta-feira, 27 de outubro de 2010


Registos Outonais

Música: Tears, de Isisip
Fotografias e vídeo: Ilona Bastos
Lisboa, Outubro de 2010

sábado, 23 de outubro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

RETRATO DO MEU AMOR


Olho o teu rosto jovem e audaz,
Fito os teus olhos ternos, meigos,
Que a verdade contam sem receios.
Penso em ti, longe de mim, tão só,
Vejo-te em sonhos, olhando em paz
O verde molhado dos outeiros…

Toco-te a boca, que cerras, sem falar,
Miro-te o queixo, erguido, valoroso.
Sei-te distante, na estrada, a rodar
Veloz na chuva, que tomba sem repouso.

Nas minhas mãos já sinto o teu cabelo,
O teu olhar me envolve com ardor,
Em pensamento é meu o teu calor.
Para mim vens, quilómetros correndo,
A tempestade vences, percorrendo
A distância que separa o nosso amor.



Ilona Bastos

sábado, 16 de outubro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

ENCANTO E DESENCANTO
.
.
Todos passaremos pelo encanto
e pelo desencanto.
Perguntaremos pelo esplendor
que já partiu.
Veremos a luz e as trevas.
Cantaremos, saudosos, o passado,
desalentados do presente.
Imaginaremos que só o tempo ido é belo
e o aqui e agora puramente tristeza.
Esqueceremos, cegos, que este presente
será o passado feliz.

Mas eu não quero perder o presente.
Por isso observo, procuro, encontro
a cor na escuridão,
a flor no charco,
a estrela no céu nublado.
Seja o que for, eu encontro,
para não poder clamar,
entristecida, demente,
que o passado era mais azul
ou mais róseo, ou mais brilhava
o ouro então do que agora
que vos falo, feliz.

.

Ilona Bastos

Rodrigo Leão & Cinema Ensemble - Casino Estoril ( A Mãe)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

HOUVE UM TEMPO...



Houve um tempo em que o tempo não tinha fim.
Percorriam-no jogos, corridas e risos pelo jardim,
Ou as rodas de uma dança de criança, de um triciclo,
Um ciclo de fitas animadas, livros de contos de fadas,
Baladas, romances de príncipes e princesas encantadas…

Houve um tempo de inocência, em que a aventura
Sorria, espreitando, em cada esquina, e era ventura
As pistas descobrir, e do mistério desvendar a solução,
Na convicção de quem é vencedor na luta pelo bem
E tem, em si, a ambição de ser gigante - ser alguém!

Houve um tempo de sonhos como botões de rosa,
A florescer no desfiar dos pensamentos de uma prosa,
A gentilmente se expandir em pétalas coloridas, delicadas,
Perfumadas de magia, de um aroma que embriaga, inebria
E nos guia, tal brisa suave, pelos caminhos da poesia.

Houve um tempo em que o futuro se desenhava luminoso,
Longínquo, belo horizonte pleno de esperança, grandioso,
E que os passos, alegres, decididos, cheios de felicidade,
Pela cidade me levavam, corajosos, e seguros revelavam,
Antecipavam carinhosos, o amor imenso que buscavam…

Houve um tempo em que o presente era também futuro,
Em que, vivendo a dois tempos, lançava meu olhar puro,
E dali mesmo antevia, leda visão do porvir, o que seria,
Viveria, a sorrir, o amor e a grandeza, que ainda ouso atrair,
Ouvir promessas de então, que o coração quer cumprir.


Ilona Bastos

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

Aqui estou eu, à espera que o tempo passe, a inspiração me surja, o espírito se me torne mais inteligente, os sentidos mais alerta, o ânimo se revigore, e tudo, tudo mude como deve mudar para que eu seja o que nunca fui, imagine o que nunca imaginei, descubra o que nunca descobri, escreva o que nunca escrevi…


Frederico de Freitas-Suite Medieval (Início)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

FALAR DE MIM


Nas coisas e nos seres
estampo a minha luz.
E descrevo-os, assim,
Luminosos ou sombrios,
Consoante me sinto.

Falar do que me rodeia
É, por isso, falar de mim.
Como evitá-lo?

Escrever sobre o cadeirão,
Colocado junto à janela –
O tecido verde e rosado,
Amparado pela armação
Leve, em madeira clara –
É dizer de mim, ou do outro,
O que pensou o desenho,
Escolheu o tecido e os tons,
Coseu almofadas e botões,
Cortou o pinho e amaciou-o?

É falar de mim ou daquele
Que no cadeirão se senta,
E o faz seu ao longo dos dias
E das noites?
Ou é antes recordar a mulher
Que lhe limpa o pó?
Ou o cão, que nele se aninha,
Preguiçoso?
Ou o que construiu o edifício
E rasgou a janela?

Continuo a pensar,
Apesar de tudo,
Que o cadeirão,
No meu olhar,
É imagem minha,
E se dela falo, é de mim,
Afinal, que estou a falar. .
.
Ilona Bastos

António Pinho Vargas (1984) Da alma.mov

sábado, 2 de outubro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

Giovanni Papini


""A única solução plástica possível consiste em passar da imobilidade ao efémero. A arte mais perfeita, a música, soa, passa e desaparece. O som é instantâneo, não perdura, e, contudo, é poderosíssimo. Se todas as artes aspiram à música, também a escultura deve aproximar-se daquela divina coisa passageira. Dar-lhe-ei, agora mesmo, o exemplo."
" Ao dizer isto, Matiegka, com as suas mãos delicadas, destapou o trípode, que se encontrava ao centro do estúdio, e colocou nele uma pasta quase negra a que ateou fogo. Elevou-se, rectilínea, sobre o braseiro, uma coluna densa e espessa de fumo. O fantástico escultor empunhou uma espécie de comprida palheta na mão direita, a seguir, outra com a esquerda e começou velozmente o seu trabalho, girando em torno do globo alongado de fumo, servindo-se dos instrumentos, dos braços e do sopro. Em menos de um minuto, a escura coluna adquiriu o aspecto de uma figura humana, de um fantasma amarelo, que ameaçava esfumar-se a cada instante. A massa arredondara-se na cúspide, até aparecer uma cabeça, e, com um pouco de boa vontade, podia distinguir-se um arremedo de nariz e o projecto de uma barbicha. O fumo, espesso e gorduroso como o que sai das velhas locomotivas em repouso, deixava-se cortar pelas mordidas insistentes das palhetas. Matiegka, muito pálido, movia-se como um condenado; repelia o fumo que ameaçava confundir as duas pernas, soprava levemente nos ombros da estátua aérea, para os tornar mais verosímeis, ou afastava a réstia fumegante que impedia a identificação das linhas da obra. Finalmente, afastou-se, aproximou-se de mim e gritou:

"- Olhe! Depressa! Imprima a forma na sua memória! Dentro de poucos segundos, a estátua dissipar-se-á como uma melodia que finda! "
E, realmente, a pouco e pouco, o fumo, estendendo-se, deformava-a; o fantasma desfez-se, dissolveu-se numa névoa escura que desaparecia lentamente por uma abertura da clarabóia.

"- A obra-prima morreu, como morrem todas as obras-primas - exclamou Matiegka. - Que importa? Posso tornar a fazer quantas quiser. Cada obra é única e deve bastar para a alegria de um momento único. Que uma estátua dure dez séculos ou dez segundos, que diferença há, com relação à Eternidade, que diferença, se tanto a de mármore como a de fumo devem, afinal, desaparecer?"

Giovanni Papini, Gog, A Nova Escultura, Editora Livros do Brasil

Fotografia de Ilona Bastos

EU SEI

Eu sei que apetece desistir
e desesperar,
eu sei.

Mas repara, está lá tudo,
nesse incrível caldeirão
que é o mundo.

Está o sofrimento
misturado com o amor,
e a meiguice dissolvida
em azedume.

Está lá tudo, te garanto!

Estão lá a sabedoria e a estupidez,
em partes iguais, e em idêntica proporção
a raiva e a paixão, amálgamas de fúria,
bondade, e indescritíveis rancores.

Estão lá o ódio e a candura,
a violência, a inveja e a arrogância,
as acções mais nobres, a inocência,
o desapego.

Só temos que distinguir.
Que extinguir o fogo do mal
com a espuma da nossa esperança.
Que regar a flor do bem
com a água da nossa fé.

Eu sei, eu sei.
Mas repara bem.
Está lá tudo!


Ilona Bastos

Rão Kyao - Rota dos Navegantes

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

MEU CANTO


Só neste meu canto é que eu me encontro,
E em nenhum outro mais que possa se inventar.
Procurar-me, para quê, noutro lugar?

Só desta voz eu oiço a lhana fala,
De um jeito longo, encadeado, quase prosa
Que eu não sei calar, muito que tente.

Portanto, nada mais posso escrever
Senão o que escrevo, ditado pela voz
Que me sussurra, que me grita e canta,
Neste canto de mim onde me escondo.


Ilona Bastos


José Vianna da Motta, Concerto para Piano em Lá maior


Artur Pizarro, Orquestra Gulbenkian, Cond. Martyn Brabbins

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

A BÚSSOLA


Eu tenho esta bússola, meu guia,
Que em cada dia inspira o meu caminho
E no caminho indica a direcção.
.
Confio nela? Mais que em guru!
.
Se o rumo perco, quem vai me socorrer?
Quem sabe dos meus sonhos e ilusões,
Dos medos, das acções e omissões?
.
Só ela, bússola, minha consciência,
Me sabe as qualidades e os defeitos
Que ao mundo passam mudos, ignorados.
.
Por isso, é vã vaidade de terceiros
Meus passos dirigir aqui e além.
Sigo o caminho que me está traçado
Pela bússola que eu tenho e mais ninguém.


Ilona Bastos


João Domingos Bomtempo - Sinfonia Nº 2 (Minueto - Allegro)



Vídeo de jprmp



domingo, 19 de setembro de 2010


FAZEDORES DO MUNDO


É fazer muito, o caminhar pela estrada,
As mãos atrás das costas, o rosto erguido,
Os olhos postos na paisagem longínqua
Que o horizonte desenha ao pôr-do-sol.
-
É fazer muito, é fazer tudo.
Porque nada há de tão sublime
Como o horizonte e o sol,
E essa paisagem de árvores despidas,
Telhados, automóveis que se movem
Com um desprendimento quase sobrenatural.
-
É fazer a própria paisagem.
É fazer o mundo.
Por isso não olheis com desdém
Aquele que caminha pela estrada,
De olhos postos…


Ilona Bastos


Carlos Seixas, Sinfonia for Strings in B flat Major

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

António Victorino D'Almeida

"Há uns segundos breves, na vida de todos os dias que não padeçam de nevoeiro ou chuva, em que o Sol, no seu poente, como que acenando um derradeiro adeus em beleza, matiza céu e terra de cor-de-rosa.
"É um instante fugaz, indeterminado, alheio ao mecanismo monótono dos ponteiros do relógio; mas, para aquele homem, que talvez fosse poeta, conquanto não soubesse fazer versos, esse momento cor-de-rosa na vida do mundo ocupava todas as horas do dia, antes na expectativa, depois na recordação.
"Estava-se numa pequena aldeia do Norte de Portugal, em 1963."



António Victorino d'Almeida - Prelúdio No1

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

HOJE

Hoje é um dia de harmonia,
Um dia delicado,
Em que vou cantar a folha
E não a árvore,
A pétala e não a flor,
A gota e não o oceano,
O grão e não a areia.

Hoje vou dedicar-me
Aos mais belos pormenores,
Como o do silêncio,
O do gesto,
O do sorriso,
O do traço,
O da letra.

Hoje vou fazer uma poesia
Sobre as mais nobres qualidades,
A fé,
A esperança,
A caridade,
E vou amar os meus semelhantes
Como a mim mesma.

Hoje vou ouvir as palavras
Dos meus irmãos,
Vou olhá-los nos seus olhos,
Vou entender as suas hesitações,
Vou sentir as suas emoções,
Vou compreender os seus sonhos
Hoje, vou dar-lhes a minha mão.


Ilona Bastos


domingo, 5 de setembro de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

POEMA-QUADRO

Do traçado breve
desenhando um vulto sentado à janela
liberta-se não sei que estranha calma,
que suave paz.
São as mãos esguias
pousadas sobre os joelhos.
São os olhos plenos de paisagens
lançados além vidros.
É o recostar no espaldar de uma cadeira
numa imobilidade que não fere as dimensões
nem o silêncio, e em si se afirma ser.
.

Eloquente, a vida existe
impregnada nas rectas de um tampo de madeira
que é mesa e paleta,
no esboço de um cilindro
que é caneta e pincel,
no brilho de uma janela
que é papel e tela
onde se compõe um poema-quadro.

Ilona Bastos



terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

Leo Tolstoi

"Eu regressava a casa pelos campos. Era o pino do Verão. Os prados tinham sido gadanhados e o centeio estava prestes a ser ceifado.
"A combinação das flores é fascinante nesta altura do ano: trevos vermelhos, brancos e cor-de-rosa, aromáticos e felpudos; margaridas descaradas; malmequeres brancos como leite, com centros de amarelo garrido e o seu odor apodrecido e condimentado; colza amarela com um aroma a mel; campânulas parecidas com túlipas lilases e brancas que se elevam bem alto ervilhas-de-cheiro rasteiras; apuradas escabiosas amarelas, vermelhas, cor-de-rosa, lilases tanchagem, com a penugem rosada e o cheiro quase imperceptível; centáurea, azul-escura quando exposta ao sol e durante a juventude, azul-clara e avermelhada ao pôr-do-sol e com o aproximar da velhice; e as delicadas flores de cuscuta, que murcham num instante, com um perfume de amêndoas."

Leo Tolstoi, Khadji-Murat, Cavalo de Ferro, tradução de Olga Solovova



terça-feira, 3 de agosto de 2010

BAILADOS DE GAIVOTAS

Ao som de La Primavera,
o branco planado das gaivotas
estampado contra o azul do céu!

Um bailado majestoso de voos
singulares, aos pares, em volteados,
aproximando-se, sobrevoando-me,
cruzando-se em diferentes planos,
surgindo em inesperadas alturas
aos círculos, em rodas, elipses,
afastando-se em direcção ao mar!

Com a Viúva Alegre de Lehár
valsam agora sobre o miradouro
com suavidade magistral!

Alongam-se elegantes pela praia,
partem em alegres incursões
no areal ou entre os edifícios,
elevam-se, dispersam-se aventureiras,
alcançam os veleiros ao largo
chamando, quase cantarolando,
retornam, em grupo, aos rochedos!

Bailam as gaivotas sobre as arribas,
grandiosas, inspiradas, cheias de vida,
bailam as gaivotas, embriagadas de azul!


Ilona Bastos

domingo, 1 de agosto de 2010




MAR – V

Estou e não estou
Na praia,
Enquanto não conversar
Com o mar.

Se o contemplo de longe,
Se lhe aceno sorridente,
Mas não me entrego, sozinha,
Não estou ainda na praia.

Se desço a longa escadaria,
Se saltito sobre a areia quente,
Mas não me entrego, sozinha,
Não estou ainda na praia.

Se molho os pés conversando,
Se olho os banhistas divertida,
Mas não me entrego, sozinha,
Não estou ainda na praia.

A conversa com o mar
É assunto meu.
Requer silêncio e sensibilidade,
Pois falo com os poros
Todos do meu corpo,
Escuto com todos os milímetros
Da minha pele,
Dou-me da ponta dos pés
Ao extremo dos cabelos,
Mergulho uma e outra
E outra vez, com suavidade,
Longe dos risos e dos gritos,
Afundada no marulhar das ondas,
No sabor salgado e na brisa,
No brilho e na temperatura
Quase quente, quase fria
Do arrepio.

Assim converso com o mar.

Ilona Bastos

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

MAR – IV


Proponho-me ser eu
Em vez de nós,
E singular descer
Ao areal.

Momentaneamente
Cercada de paredes,
Vejo no interior do meu olhar
As manchas bege, branca e azul
Da areia, da espuma e do mar.

Imagino-me descalça,
Caminhante sobre a borda da água
Que sei ser macia,
Deixando que a espuma
Borbulhe brilhante sobre a minha pele,
E que o mar
Aqui tão suave e transparente
Se desdobre e deslize, fluído
E luzidio, sobre a areia
E os meus pés.

Sinto a água tépida
A receber-me e a retirar-se
Brejeira, e a novamente avançar,
Solícita, em corridas e recuos
Sucessivos, em nítida brincadeira
Com o sol.

Proponho-me ser eu
Em vez de nós,
E singular brincar
Com o sol e o mar.


Ilona Bastos


quarta-feira, 28 de julho de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

MAR – III

Do rectângulo que é janela
Me aproximo,
Atraída pelo azul intenso,
Delicadamente debruado a branco
Numa faixa estreita
Junto à mancha bege
Do areal.

E as rochas, manchas também,
Que abrigam as gaivotas
Brancas,
E o bordado verde das folhas
Das árvores, que brilham
Em primeiro plano,
Tudo me atrai para o
Rectângulo que é janela.

Junto à janela
O quadro é alargado
E perfeito.

Pequenas figuras humanas
Caminham na maré baixa,
Com a elegância própria da manhã
E da lonjura.

As folhas das árvores
Vibram suavemente na brisa,
Na demonstração de que a paisagem
É viva.

A bandeira azul e branca
Acena compassada
Sobre a rocha clara,

E as gaivotas voam
À desgarrada, cruzando
A nossa vista, em improvisos.

Um barco carregado
Navega sobre a água mansa,
Para a frente inclinado,
Desenhando o seu rasto de espuma,
Cruzando-se com outro barco,
Ambos ligeiros, ambos sabedores
Do seu destino.

Afasto-me do rectângulo
E uma vez mais maravilho-me
Com a intensidade do azul
E o brilho do verde acenante.

Regresso ao meu posto,
Dilatando a paisagem
E abarcando, no meu olhar,
Todo o horizonte.


Ilona Bastos

domingo, 25 de julho de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

John Milton

" Pois a verdade é que os livros não são coisas absolutamente mortas, encerrando em si uma vida em potência que os torna tão activos quanto o espírito que os produziu. Mais ainda, os livros conservam, como num frasco, o mais puro extracto e eficácia do intelecto vivo que os gerou. Sei que estão tão vivos e tão vigorosamente produtivos como os dentes daquele dragão da fábula e que, disseminados aqui e ali, podem fazer surgir homens armados. Mas isto significa também que, se não se usar de cautela, matar um bom livro é quase o mesmo que matar uma pessoa. Quem mata um homem mata uma criatura racional feita à imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro mata a própria razão, mata a imagem de Deus, como se esta estivesse nos olhos. Muitos homens são um peso para este mundo; um bom livro, porém, é a seiva preciosa de um espírito superior, embalsamado e deliberadamente preservado para uma existência que ultrapassa a vida."

John Milton, Areopagítica, Livros que Mudaram o Mundo, Público

domingo, 18 de julho de 2010

Fotografia de Ilona Bastos

Fim-de-Semana

Fim-de-semana é oásis
Palmeira verde e lagoa.
Namoro terno em Paris
Champagne, comida boa.

É sopro de brisa amena
Carícia de ar na alma,
É onda do mar que acena
Afago que o corpo acalma.

É sono, sonho, poesia
Livro, filme, exposição,
É dança, arte, magia
Música, canto, canção.

É rosa em nosso jardim
Mergulho na natureza,
Junto à família, festim
E, com os amigos, beleza!

Fim-de-semana é de mel,
Doçura leve, alegria!
Segunda-feira é de fel,
Acabou-se a fantasia...


Ilona Bastos


sábado, 17 de julho de 2010


João Paulo II

"Não será que após a queda do muro visível, se tenha descoberto outro muro, desta vez invisível, que continua a dividir o nosso continente: o muro que passa pelo coração dos homens? É um muro feito de medo e de agressividade, de falta de compreensão pelos homens de origem diversa, de cor de pele diferente, de distintas convicções religiosas; é o muro do egoísmo político e económico, do enfraquecimento da sensibilidade em relação ao valor da vida humana e à dignidade de cada homem. Nem mesmo os incontestáveis êxitos do último período, no campo económico, político e social escondem a existência de tal muro. A sua sombra estende-se sobre toda a Europa. A meta de uma autêntica unidade do continente europeu ainda está longe. Não haverá unidade na Europa, enquanto esta não se fundar na unidade do Espírito."


João Paulo II, discurso em Gniezno, Polónia, a 3 de Junho de 1997


E Vós, O Que Pensais Sobre Isto?



Caminhando pela rua,
Há momentos em que me apetece parar,
Quedar, estática, na beira do passeio,
Simplesmente sentir a brisa no rosto,
Escutar o som dos automóveis velozes,
E dos aviões que se atravessam na paisagem,
Aspirar o odor das flores primaveris
Que se desprende dos jardins vizinhos.
Nestes momentos, apetece-me parar...

E vós, o que pensais sobre isto?


Vivendo a vida,
Há alturas em que me apetece meditar,
Cessar toda a acção rotineira,
Afundar-me num oásis de calma,
Em livros profundos, escritos por sábios,
Procurar a resolução deste mistério que é a vida,
Reflectir sobre o sentido da existência,
Formar ideias simples mas fundamentais,
Sentir o mundo como parte de mim..
Nessas alturas apetece-me meditar...

E vós, o que pensais sobre isto?


Ilona Bastos

domingo, 11 de julho de 2010


Robert Benchley

"Durante a época de Natal e Ano Novo andou de boca em boca, pelos escritórios e salas de visita, o desagradável boato de que eu tinha sido preso. Gostaria de deixar claro desde já que fui eu próprio que lancei esse boato. Não só o lancei como gastei bastante dinheiro para o manter vivo, recorrendo a mexeriqueiros pagos, para que os meus amigos percebessem por que motivo não lhes enviava presentes ou bilhetes-postais com lembranças minhas. De um homem preso numa cadeia não poderiam esperar que lhes enviasse qualquer coisa, não é verdade?"


Robert Benchley, Wit, Ensaios Humorísticos, Tinta da China edições.

sábado, 3 de julho de 2010


O Sono e o Brilho

Brilham a água e as bolhas transparentes.
Por mim, tenho sono. Não tomei café...
Ou será da leitura, que sinto aborrecida?
Ou antes do sol, que bate nas letras pretas
deste livrito bege e me torna o olhar parado,
pasmado, à beira do precipício do sonho?

Não importa. A água brilha e encandeia.
O ruído surdo de conversas distantes, e próximas,
e do avião que surge, gigantesco passarão,
na paisagem paradisíaca do Campo Grande,
alimentam a sonolência da ocasião.

Brilha a água, e as bolhas transparentes (também elas),
como mísseis electrónicos,
disparam cadenciadamente do fundo do copo
até atingirem a superfície.

Assim também as ideias me surjam,
cometas fugazes de trajectória brilhante,
no afundar doce, hipnótico, incoerente, do abismo do sono.
Não tomei café...


Ilona Bastos

sábado, 22 de maio de 2010


Quando saí, ouvi da casa vizinha palavras de admoestação suave:
"Hoje estás muito rabino, gato!"
Também eu, antes de fechar a porta da rua, me voltara para trás, recomendando:
"Porta-te bem, cãozinho! Ficas a tomar conta da casa..."
Agora, deslizando sobre o alcatrão, passo pela montra de uma loja, diante da qual um senhor de cabelo branco se interessa pelos artigos expostos. Ao seu colo, tão atento quanto o dono, um pequeno rafeiro de pêlo dourado estende o focinho delicado para o vidro.
Não consigo deixar de virar a cabeça, para acompanhar por mais tempo aquela cena graciosa. E parece-me curioso o facto de tratamos os nossos animais como se fossem crianças.

Sorrindo enquanto me fala do seu gato, a senhora jovem acaba por fazer adormecer a voz numa pausa triste: "A minha cadela morreu, sabia?"
Consternada, mal sei como consola-la, e acabo por murmurar apenas: "É difícil..."
"Sim, é difícil", concorda. "Um cão é como um familiar nosso. E um familiar muito chegado."


Ilona Bastos

terça-feira, 30 de março de 2010



ECOS


Mesmo que aos ouvidos
me não cheguem,
os ecos existem, eu sei.
Largados no espaço, talvez.
Aos meus anseios, eu sinto,
uma voz responde,
inaudível mas forte,
ao longe criada, difundida
pelos confins do Universo.

Mas como encontrá-la,
se aos meus ouvidos não soa,
ao meu olhar não aporta,
em meus dedos não se aninha
essa voz, eco de vida e amor?
Só, à margem dos sentidos,
cabe ao coração se abrir
às ondas vogando, voláteis
carícias do Criador!
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Ilona Bastos

segunda-feira, 22 de março de 2010


Tadeusz Turakiewicz.
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"Que padre que ele foi! Não houve outro como ele! O que viam nele de extraordinário aquelas pessoas simples? O que tinha de especial? Oração, humildade e pobreza. Levantava-se de manhã, caminhava lentamente pela vereda rumo a Wiatrowice ou andava com um livro à volta da igreja, a rezar. E a pobreza? Quando fazia visitas pastorais às casas dos fiéis, entregava aos pobres o que recebia dos ricos. Voltava à casa paroquial de mãos a abanar. Visitava constantemente os pobres. Havia uma mulher a quem chamavam Tadeuszka, que era de Kleczany. Uma vez, foi ter com ele para se queixar, porque tinha sido roubada. E ele deu-lhe tudo o que tinha. Inclusive a almofada e a roupa de cama. As pessoas até ficaram zangadas: tinham acabado de comprar tudo aquilo para ele, porque dormia numa cama sem nada... E humildade? sabia falar com qualquer um, apesar de já ter terminado o curso em Roma."
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Tadeusz Turakiewicz, Recordações de João Paulo II, Compilação e redacção de Janusz Poniewierski, Concepção e colaboração de Jan Turnau, Lucerna

domingo, 7 de março de 2010

sábado, 27 de fevereiro de 2010


Voltaire


"Cândido e Cacambo subiram para a carruagem. Os seis carneiros voaram e em menos de quatro horas chegaram ao palácio do rei, situado no extremo da capital. O portal tinha duzentos e vinte pés de altura e cem de largo. É impossível exprimir de que era feito e compreende-se facilmente que prodigiosa superioridade devia ostentar sobre essas pedras e essa areia que denominamos entre nós ouro e pedras preciosas.
"Vinte lindas raparigas da guarda receberam Cândido e Cacambo ao descerem da carruagem e conduziram-nos aos banhos, vestindo-lhes depois trajes tecidos com as mais macias penas de colibris. Após essa cerimónia, os homens e as mulheres, grandes oficiais da Coroa, guiaram-nos aos aposentos de Sua Majestade, entre duas alas de músicos com mil artistas cada segundo o uso comum. Quando se aproximaram da sala do trono, Cacambo perguntou a um oficial como devia fazer para saudar sua Majestade, se era preciso pôr-se de joelhos, se de ventre no chão; se poriam as mãos na cabeça, ou no traseiro; se lambiam a poeira da sala; enfim, qual seria o protocolo.
"- O costume - disse o grande oficial - consiste em abraçar o rei e beijá-lo nas duas faces.
"Cândido e Cacambo saltaram ao pescoço do rei, que os recebeu com a graça mais inimaginável e os convidou cerimoniosamente para cear.
"Enquanto esperavam pela ceia mostraram-lhes a cidade, os edifícios públicos erguidos até às nuvens, os bazares ornados de mil colunas, as fontes de água pura, as fontes de água de rosas, as de licores de cana-de-açúcar que corriam continuamente nas grandes praças pavimentadas com uma espécie de pedras preciosas que derramavam um odor semelhante ao goivo ou à canela. Cândido pediu para visitar o palácio da justiça e o parlamento, mas disseram-lhe que isso não existia, porque ninguém questionava. Perguntou se haveria prisões e disseram-lhe que não. O que mais o surpreendeu e maior prazer lhe causou foi o palácio das ciências, no qual viu uma galeria, longa de dois mil passos, repleta de instrumentos de matemática e física.
"Após terem percorrido, durante toda a tarde, apenas a milésima parte da cidade, conduziram-nos de novo ao palácio real."

Voltaire, Cândido, Lisboa, Guimarães Editores.



Desejando a Primavera!