sábado, 18 de fevereiro de 2012


Anatole France

"24 de Dezembro de 1861.

 Tinha calçado as minhas pantufas e enfiado o robe-de-chambre. Limpei uma lágrima com que o vento agreste do cais me empanara a vista. Um lume claro ardia na chaminé do meu gabinete de trabalho. Cristais de gêlo, em forma de fôlhas de fêto, floriam nos vidros das janelas e escondiam-me o Sena, as pontes e o Louvre dos Valois.
"Aproximei do fogão o meu fauteuil e a minha mesa volante e tomei junto do lume o lugar que «Amílcar» se dignou deixar-me. «Amílcar», em frente do fogão, numa almofada de penas, deitara-se enrodilhado, de nariz entre as patas. Uma respiração igual lhe erguia o pêlo espêsso e ligeiro. Á minha chegada circulou docemente as pupilas de agate entre as pálpebras semi-cerradas que tornou a fechar quási de seguida, pensando: «Não é nada, é o meu amigo.»
"-- «Amílcar» -- disse-lhe eu estendendo as pernas --«Amílcar», príncipe sonolento da cidade dos livros, guarda-noturno ! Tu defendes contra os vis roëdores os manuscritose os impressos que o velho sábio adquire a preço de um módico pecúlio e de um zêlo infatigável. Nesta biblioteca silenciosa, que as tuas virtudes militares protegem, deixa-te dormir, «Amílcar», com a moleza de uma sultana ! Porque tu reúnes, na tua pessoa, ao aspecto formidável de um guerreiro tártaro a graça pesada de uma mulher do Oriente.  Dorme, heróico e voluptuoso «Amílcar», até à hora em que os ratos dansem ao luar, perante a Acta Sanctorum dos doutos Bolandistas.
"O comêço dêste discurso agradou a «Amílcar», que o acompanhou de um ruído de garganta semelhante ao de uma chocolateira a ferver. Mas, como eu elevasse a voz, «Amílcar» advertiu-me, abaixando as orelhas e enrugando a pele zebrada da fronte, de que era impróprio declamar assim. E pensava :
"-- Êste homem dos alfarrábios fala para nada dizer, enquanto que a nossa governanta nunca pronuncia senão palavras cheias de senso e interêsse, contendo quer o anúncio de uma refeição, quer a promessa de uma palmada. Sabe-se o que ela diz. Mas êste velho ajunta sons que nada significam.
"Assim pensava «Amílcar»."

Anatole France, O Crime de Silvestre Bonnard, tradução de Jaime Cortesão, Livraria Lello  Irmão Editores


 
 

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