sábado, 24 de março de 2012

  
Thomas Mann

«Para também fazer jus às alegrias, é necessário dizer que eram inúmeras e, embora surgissem de motivos triviais, não eram, por isso, menos avassaladoras do que as dores. Qualquer momento do dia-a-dia do Berghof era bom para as produzir. Por exemplo: preparando-se para entrar na sala de jantar, Hans Castorp dá-se conta da presença do objecto dos seus sonhos atrás de si. O resultado, de uma total simplicidade, já se consegue prever, mas arrebata-lhe a alma até à comoção. Os olhos encontram-se, os seus e os verde-acinzentados, aqueles olhos de feitio e recorte ligeiramente asiáticos que o encantam até à medula. Ele fica fora de si mas, mesmo assim, consegue recuar uns passos para lhe dar passagem. Com um sorriso velado e um "merci"  quase imperceptível, ela aceita esse gesto de pura gentileza e entra na sala, passando perto dele. E ali fica ele,  envolto na fragrância da pessoa que acaba de roçar por si,  louco de felicidade por tal encontro se ter dado e por uma palavra desprendida da sua boca, aquele "merci",  ter sido dirigido única e directamente à sua pessoa. Segue-a, encaminha-se, hesitante, para a direita, para a sua mesa, e no momento em que se afunda na cadeira, constata que "Clawdia", no outro extremo da sala, sentado-se igualmente à mesa, volta o olhar na sua direcção -- como que pensando, ao que lhe parece, naquele encontro à entrada. Ó aventura inaudita! Ó sinos, repicai de júbilo, glória e ventura infinita!»

Thomas Mann, A Montanha Mágica, D. Quixote, tradução de  Gilda Lopes Encarnação


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