domingo, 30 de agosto de 2009


Este barulho incómodo, de motor, este besoirar quase insignificante que me acordou, é letal, compreendo-o.

Nem desejo levantar a persiana e encarar a rua. Embora, por outro lado, seja forte a tentação de escancarar a janela, debruçar-me e gritar: “Parem! Que mal vos fez essa árvore?”

A motosserra manhosa continua o seu trabalho e oiço brados (vozes de homem) abafados pelos sons exteriores e pelos ruídos domésticos, estes mais próximos e apaziguadores. A água que corre nas torneiras, o arrulhar dos pombos no sótão, o carro eléctrico, os automóveis a passar, por momentos encobrem a serra persistente, que agora retoma o seu labor acompanhada de outra máquina zumbidora, num dueto que consideraria risível se não adivinhasse fatal.

Fecho os olhos e distingo nitidamente o choupo alto e frondoso, com os seus ramos abertos e as folhas verdes a brilhar ao sol. Como poderá estar doente, comido pelos bichos, com o tronco oco – como dizem – se se ergue majestoso, formando com os irmãos uma magnífica guarda que avança pela calçada, acompanhando o traçado do lancil e projectando, com o balanço dos seus braços, chispas de luz e desenhos de sombras, sobre o empedrado? Como viverá a rua sem o seu príncipe grandioso? Como continuaremos nós o caminho, como sairemos para mais um dia, agora que a nossa vista não encontrará o luzir dos seus abraços, o afago da sua dança, o murmúrio das suas folhas ao vento? Não consigo imaginá-lo.

E não desejo levantar-me, não. Vejo ainda com nitidez o papel ontem afixado no tronco do choupo-negro que nasceu, cresceu e viveu, durante perto de quarenta anos, diante do nosso prédio, e recordo a sentença nele inscrita a caneta vermelha - “Trabalho a executar: ABATE”.
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A motosserra continua o seu indiferente besoirar e eu sinto a minha vida a ficar cada vez mais pobre.

Ilona Bastos

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