quinta-feira, 21 de agosto de 2008


Livre, leve, fremente, feliz – assim desperta o meu corpo pela manhã! Rebolo-me entre os lençóis, salto, subo a persiana e anseio pelo jorro da água quente do duche. Agradeço este acordar alegre, sentada na beira da cama, com as minhas anotações. Espero a minha vez de furar o casulo e voar como borboleta. Respeito as precedências, espreitando o relógio, consciente de uma música vaga, provavelmente oriunda do apartamento ao lado. Passam automóveis e eléctricos. De lá de dentro vêm os sons em certa medida já esperados, mas que em todo o caso contrariam a minha vontade. O ladrar longínquo do cão e a voz, inequívoca, da vizinha de baixo, no seu lamento continuado…
Vai, vai, vai tomar banho, para que possa, também eu, prosseguir o meu caminho. Levanta-te, prepara-te para sair – tens onde estar às 10 horas, e eu quero seguir a minha vida!
Abro a boca, com sono, e o som da porta da casa de banho a fechar-se mostra que os meus apelos, apesar de mudos, foram ouvidos. Volto a bocejar, ainda com sono, agora desejosa de um café.
Mas, antes, todo o ritual será seguido.


Que lindo, que lindo o seu olhar azul de menina pequenina.
E as bochechinhas brancas! E os caracóis sedosos! Ao colo da avó, estende os bracitos ao vento.
Quer a chucha. Quer dormir.
Os olhos maravilhosos pestanejam. Esconde a carinha entre as mãos. E agora parece que vai chorar, mas não chora – suas pupilas suspensas das palavras da senhora de brancos cabelos, que lhe fala, carinhosa.


Procurei-te, procurei-te sem te encontrar. E, afinal, estavas tão perto…

Importante foi o odor forte a clorofila, o vento a balançar os ramos, as nuvens molhadas no céu, a ameaçar tempestade.
Depois, tudo amainou. Primeiramente, o cheiro, que se apagou, como por encanto, das minhas narinas. E do vento, nas árvores, restou o som chiado dos troncos a ranger nas amarras (árvores jovens, ruído a mar…). Finalmente, dois vultos silenciosos, parados na estrada, o meu passo apressado, o aroma súbito a tabaco de cachimbo e a maré de recordações que me faz soçobrar… Conseguiremos, sequer, pensar para além do politicamente correcto? Ou tanto nos cerceia a “verdade” actual, defendida exaustivamente pelos media – que chegam ao ponto de humilhar publicamente quem reclame uma posição contrária – que tememos aproximar-nos doutras águas, doutras correntes, doutros pensamentos?
Ironicamente, a “verdade” dos media muda de um dia para o outro. Mas a arrogância persiste. É sempre lógica e evidente a tese imposta no momento, e quem não alinhar nas sucessivas ondas e marés acaba por se afogar.
Mas, agora, que me encontro na margem do lago, que avisto um marinheiro a içar suas velas, tomar o leme e seguir linearmente a sua rota, não hesito em retribuir o seu aceno, descalçar os sapatos, despir a roupa, mergulhar nas águas tépidas, nadar um pouco e sentir, com alívio, o prazer do pensamento livre.
Erro meu, comer três iogurtes de empreitada! Como surpreender-me, agora, com o que era por demais previsível? Um novo atraso na hora de dormir…
São duas e meia, e o telemóvel começa com aquele insuportável choro de que lhe falta energia. Piegas! Teve todo o dia para reclamar, e é a esta hora que se decide a requisitar a minha atenção! Obriga-me a levantar da cama, a procurar sofregamente o carregador, a ligá-lo à corrente, antes que te acorde, meu amor.
Dormes, agora, de costas voltadas para mim. Vejo-te o cabelo negro e farto, o côncavo da orelha e parte pequeníssima da bochecha. As tuas costas amplas expandem-se e contraem-se com a respiração, acompanhando o ressonar leve que agora te oiço.
Quanto tempo terei de esperar que o telemóvel carregue o suficiente para não nos incomodar durante a noite?
De lá de fora, chegam-me os ruídos da camioneta de recolha do lixo, que começa a afastar-se gradualmente! Estes barulhos sobressaem familiarmente no silêncio da noite.
Gosto do silêncio, e gosto deste sons reconhecíveis e controlados. E abro novamente a boca, com sono.

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A ideia básica é colocar a cabeça a funcionar.
Posiciono-me diante da chávena de café, rasgo e inclino o pacote de açúcar. Com estudada displicência dobro a embalagem vazia e debruço-me sobre a mesa. Começo a escrever.
Já o aroma do café me chega às narinas, enquanto a superfície acastanhada vacila no momento em que escrevo empenhadamente estas palavras no bloco aberto sobre a mesa de aço inoxidável. Largo a caneta para pegar na colher com que vou mexer o café. Largo-a depois, a ela, para retomar a caneta. De uma assentada, bebo dois goles, arrepio-me com o sabor forte e com o vento que me despenteia o cabelo.
Mais invasivas são, porém, as vozes que me chegam do interior da pastelaria. De uma só vez bebo o resto do café (é tão pouco, afinal!) e ausculto-me conscienciosamente, procurando detectar algum efeito que a preciosa bebida tenha induzido no meu raciocínio (não esqueçamos, trata-se de pôr a cabeça a funcionar…).


Abrandar, rodar o volante à esquerda, ultrapassar, acelerar.
Tic, tec, tic, tec. Um pombo a aterrar no passeio, o jardim botânico. Estão 22º C. Abre o sinal – bem mais rápido do que esperava -, nova pausa junto ao restaurante chinês.
O travão de mão a ranger. Ao lado, o soluçar entrecortado de um táxi. Depois, a curva junto ao hotel, o prego a fundo, o peão inusitado, a travagem. Seguindo caminho. O avião. Na paragem, sentado, agarrado à pasta (ao portátil?) o rapaz de barba.
Retomamos caminho, arrancamos para ficar junto ao portão do jardim. A meio da rua, mais ou menos. Exactamente, a meio da rua.
Pontualidade britânica. Apenas a minha, contudo.
Volto a retirar o bloco da carteira, para escrever. Fala-se de chuva, em passos sublinhados pelo soar de sapatos, de salto alto, de senhora elegante.
Eu escrevo como se não existisse. Aqui. À entrada do jardim, por onde muitos passam. Os pássaros chilreiam, lá para dentro do paraíso que esta entrada, à minha esquerda, promete. O aroma das plantas chega até mim. Pela visão periférica passam raparigas de jeans, jovens de mochila às costas, senhores de fato, óculos e cabelo branco, que cantarolam. Passam grupos. Grasnam os patos selvagens. Turistas vagueiam. Homens elegantes, casais sofisticados entram. E eu, aqui, sem conseguir parar de escrever.
Penso, escrevo, escrevo, penso.


Chegou a hora de trabalhar.
Abri a janela e arregacei as mangas. Tomei um novo café. Acocoro-me e retiro um dossier do armário. É agora!


Espero-te agora, como antes.
Surgirás no toque de um telemóvel, ou no golpear forte de algumas campainhadas, à porta? Não sei! Expectante, vou-me debruçando uma vez mais sobre o papel, a mão aberta apoiada na secretária, a caneta em riste a retratar o momento.
Do sentimento de há pouco, nada restou. Outras ideias, outras conversas o dissiparam. E o perfume extraído de um minúsculo frasco que transporto na carteira, associado ao pentear do cabelo e ao compor das roupas, prepara-me para enfrentar, uma vez mais, o mundo.
Entretanto, espero-te, como disse, expectante!
Releio as páginas anteriores pela primeira vez. Curiosa, desejo saber qual o efeito criado. Farão algum sentido?
Para mim, evidentemente, fazem todo o sentido, mas surpreendem-me. Ali, junto ao portão do jardim, estava feliz e descontraída. A escrita não reflecte, contudo, esse estado de espírito.
A narrativa – se assim lhe posso chamar –, tive de a interromper bruscamente, quando chegaste.
O mesmo que agora, na verdade, pois que o toque do telemóvel e a tua voz me chamam uma vez mais.

Esperas-me!

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Ilona Bastos

1 comentário:

Anónimo disse...

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