sexta-feira, 3 de outubro de 2008


A Entrevista
Claire
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Ouve! Estás interessado em saber os pormenores da minha aventura desta manhã? Compreendo perfeitamente a tua incontida ânsia, mas por favor não saltes na cadeira! Vou contar-te tudo o que se passou…
Depois de te telefonar, logo cedo, tomei o pequeno-almoço, vesti a gabardina e saí para a rua. Ia preocupadíssima com a entrevista, como deves calcular. Mal dormira durante a noite, revendo mentalmente os pontos altos do meu curriculum e ensaiando respostas inteligentes para as perguntas que eventualmente me pudessem colocar. Agora, sobre a hora, sentia-me confusa e assustada.
Caminhei pelo passeio, um pouco atabalhoadamente, e tentei deter dois ou três táxis, que simplesmente ignoraram os meus apelos. Evidentemente, principiei a entrar em pânico quando percebi que a antecedência, tão minuciosamente calculada, com que deveria partir para alcançar pontualmente o meu destino, começava gradualmente a esgotar-se. E, para cúmulo, o trânsito estava completamente engarrafado!
Desatei, literalmente, a correr, o que se mostrou pouco eficaz. Ao fim de alguns metros tive que desistir, esbaforida, derreada. Voltei a andar, rapidamente. Mas ao passar pela montra de um stand de automóveis vislumbrei, num repente, a minha imagem, e tomei consciência de quão ridícula parecia, no esforço de ganhar velocidade, inclinando-me — cabeça, pescoço e tronco —, obstinadamente, para a frente, como se dessa forma pudesse chegar mais depressa a lugar algum.
Ouvi, então, uma buzina forte, a que se seguiu uma completa orquestra de outras buzinas, igualmente desagradáveis e estridentes. Surgiam já gritos e impropérios, quando recomeçou a chover, desta vez torrencialmente, com rajadas de granizo a bombardear a calçada.
Abriguei-me na porta de um edifício, esperando uma aberta para retomar o caminho. Pessoas passavam a correr, por vezes cobrindo a cabeça com jornais ou pastas. A rua e os automóveis tinham-se tornado cinzentos, de contornos esbatidos, enquanto as árvores, ao fundo da rua, por contraste, sobressaíam brilhantes, assumindo novo colorido e perspectiva. Isso pareceu-me ilógico e, distraída, discorrendo sobre o assunto, meti-me ao temporal, debaixo do chapéu-de-chuva.
Entregue a tais pensamentos, atravessei a rua e novamente me deixei surpreender pelo reflexo da minha imagem na montra do stand de automóveis. Parei e, sem perceber como, dei comigo a pensar: “Que estranho é ser eu!”
Agradou-me a ideia, sorri e recomecei a andar. Agradava-me também, caminhar, ali, naquele instante.
“Que estranho é ser eu!”, repeti, saboreando o pensamento.
Era estranho ser eu, e era ainda mais estranha aquela frase que eu não conseguia esquecer, nem explicar, por resultar de uma sensação súbita, do abandonar-me a mim própria, durante momentos, para me encarar da terra dos outros. E, então, assim avistada, eu era estranha, qual personagem de um filme: uma criatura esbranquiçada, envolta numa enorme gabardina azul, entrando e saindo de edifícios anónimos, semelhantes no seu aspecto e estrutura, mas recheados de diferentes gentes; bebendo-lhes os sentimentos e as imagens, para depressa os esquecer numa passada larga pela calçada, debaixo de um chapéu-de-chuva, rodeada pelo abraço de uma cortina protectora de gotas potentes e projécteis de gelo!
Alguns quarteirões adiante, sustive o passo e voltei a encontrar-me na vitrina de uma pastelaria. Novamente sorri.
“É estranho ser eu!”, insisti, espantada por com esse pensamento me sentir mais eu do que nunca.
Dentro da ampla gabardina azul que se me enrodilhava nas calças também azuis, húmida da cabeça aos pés, encontrei o coração e os olhos frescos, livres, ferreamente decididos.
Com surpreendente firmeza, com uma vontade que me pareceu inabalável, avancei solidamente pela calçada.
Invadi o prédio imponente, ignorando o rasto de água que me jorrava do chapéu-de-chuva e do vestuário. Galguei os degraus, agrupados em lanços, desprezando os patamares, que não levavam a lado nenhum. Empurrei sem hesitar a porta de vidro, e à empregada da recepção anunciei-me, importante, para a entrevista aprazada. Precedi-a no corredor, até ao gabinete pequeno com uma mesa de vidro e um júri de três cavalheiros. Cumprimentei-os, sobranceira, mas amabilizei a conversa com pancadinhas nas costas. Expliquei-lhes ao que ia e interroguei-os.
Inquiri um a um, com calma estudada e simpática atenção. Ao primeiro, de óculos, pálido e de feição miúda, porque tímido e retraído, para não o assustar, indaguei das características do emprego que tinha para me oferecer. Ao segundo, mais rosado e bem nutrido, cabelo a escassear, sugeri, com simpatia, que dissertasse sobre o ordenado e as regalias sociais envolvidas. Ao terceiro, bonacheirão, de risíveis patilhas alouradas, confiei banalidades, a troco de detalhada descrição do gabinete amplo e confortável que me seria destinado.
No final, perante tão evidente ansiedade, guardei silêncio por apenas dois minutos. E, então, para me portar à minha altura, ergui-me, cumprimentei-os e anunciei:
“Muito bem, meus senhores, convenceram-me! Aceito o lugar. Estão contentes?”. Ainda acrescentei, com bonomia: “Afinal não havia razão para tanto sobressalto, não é verdade?”
Já na rua, percebi que parara de chover e abanei ligeiramente o guarda-chuva, para o aliviar de alguma água. Desabotoei dois botões da gabardina e retomei o meu caminho. Olhei-me, benévola, satisfeita comigo própria, em paz.
Bendito o meu olhar complacente, que, conivente, me aprova, me afaga e me inunda desta estranha felicidade!

Ilona Bastos

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