sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Se escrever for simplesmente desenhar palavras belas sobre o papel, então, tudo bem, posso fazê-lo. Com dicionário e tudo, para que nenhum vocábulo, dos mais etéreos, alusivos, sugestivos, me escape.
Mas escrever é mais do que deixarmo-nos levar pelo som das palavras. É nelas encontrar e fixar um sentido belo, uma ideia inteligente.
Por isso, tanto necessito do silêncio - terra fértil -, e da música - boa semente -, para que as ideias germinem e cresçam, floresçam.
Olhando o empedrado do carreiro que atravessa o jardim, sobre ele caminhando, hoje pensava que não me falta o ânimo, o impulso inicial. Do que necessito é de perseverança!
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O Romancista

Parou, subitamente, e ponderou, por momentos, que talvez nunca conseguisse escrever o romance. Faltavam-lhe, porventura, a paciência, a aplicação e a perseverança necessárias!
Nunca esta ideia lhe ocorrera anteriormente. Na verdade, começara por julgar que o problema residia na cadeira, onde não lhe era possível sentar-se, a escrever, por mais de cinco minutos.
Tal convicção levara-o, em certa ocasião, a acalmar-se e observar o assento com extremo cuidado. Analisara-lhe a estrutura, a matéria prima, o design. Apalpara conscienciosamente a almofada que o cobria, no que fora apanhado em flagrante pela empregada, como sempre sorrateira a percorrer as divisões da casa em passinhos silenciosos.
Ilibada a cadeira, voltara o olhar acusador para a desarrumação que cobria a secretária, para os montes de livros e papeis, em caos, que o cercavam. Como queriam que escrevesse no meio daquela confusão?! Nem conseguia ouvir os próprios pensamentos, cercado de tanta retórica, tanto ensaio, tanta lei, tanto apontamento desgarrado! Aquela escrita gritante afugentara até uma ideia fabulosa que lhe surgira no dia anterior, após o café.
Convencera-se, durante algum tempo, de que tomando uma chávena suficientemente grande de café suficientemente forte conseguiria escrever um romance magnífico, essa obra-prima de suspense e emoção de que falava aos amigos havia anos - o aguardado best seller que em tudo suplantaria as historietas banais, tão em voga, que a televisão e os jornais não se cansavam de elogiar.
Evidentemente, o seu romance teria um alcance absolutamente fora de série: à semelhança dos clássicos, narraria uma história universal, susceptível de tocar todos os homens e mulheres, independentemente da nacionalidade, raça ou credo; original, jamais se apagaria da memória de quem o lesse; intenso, inteligente e subtil, prenderia a atenção do leitor desde as primeiras até às últimas palavras; profundo e filosófico, traçaria uma nova concepção do mundo; épico, inspiraria feitos grandiosos; complexo, porém, linear, reuniria o aplauso unânime dos intelectuais; enfim, valer-lhe-ia o Nobel...
Nunca tivera dúvidas da sua elevada capacidade e do seu talento excepcional. E com o café, então, as ideias que lhe atravessavam o cérebro tornavam-se verdadeiramente geniais! Só havia o problema de se dissiparem com tanta rapidez. Ao ponto de não conseguir passá-las ao papel. Quando chegava a garatujar algumas palavras e as relia, constatava, estarrecido, que nelas não encontrava sequer uma sombra da ideia magnífica que lhes dera origem. E então, enervado, atirava com a caneta, amarfanhava o papel, levantava-se da cadeira, deambulando, desesperado, pelo escritório. Daí, naturalmente, que a primeira suspeita tivesse recaído sobre a cadeira... não é verdade? Mas, pensando bem... não seria, antes, uma deficiência da caneta? Como não se lembrara disso? Sempre suspeitara do aparo, um tudo nada grosso em demasia, de uma maciez excessiva, que lhe tornava a letra grande, infantil, pouco profunda... e o gesto da escrita extremamente lento. Com certeza, encontrava-se aí o motivo por que, após tantos anos de tentativas infrutíferas, não conseguira ainda iniciar o seu romance!
Entusiasmado com esta hipótese, que revelava um sem número de novas perspectivas, decidiu explorar-lhe as potencialidades: abriu a segunda gaveta da secretária e de lá retirou, em transportes sucessivos, dezenas de canetas e esferográficas, que largou sobre o tampo, em euforia. Passou, depois, a experimentá-las, uma a uma, metódicamente, desenhando elipses contínuas que percorriam o papel da esquerda para a direita, do topo para a base. E assim preencheu folhas e folhas do seu bloco especial, durante a tarde toda, indiferente à presença da empregada, que o espreitava, encostada à porta, silenciosa, atenta, respeitosa, orgulhosa do seu patrão, o romancista.
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Lisboa, 10 de Março de 2006
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Mendelssohn (concerto para violino - parte 1)

El concierto para violin de Mendelssohn (primeros 5 minutos) . Interpretado por I.Perlman y Yo-Yo Ma
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V
acilo entre o casaco preto e a gabardina branca.
No céu nublado, de tecto baixo, procuro a resposta. Choverá? Um violino ágil, alegre, esperto, ousado, diz-me que a água, se vier, será saltitante, miúda, atrevida. Que venha, que salpique a calçada, escorra pelas folhas das árvores, orvalhe os rostos sorridentes dos transeuntes.
A crer na conversa do violino, a tarde será alegre e molhada, a temperatura, amena e agradável, e o tempo, de amor e felicidade.
Bendito violino mensageiro, que belas mensagens me trazes de Mendelssohn… (concerto para violino em mi menor?)
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Ilona Bastos

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