segunda-feira, 1 de setembro de 2008


Não era minha intenção transformar este recanto numa galeria de exposições. Mas parece-me agora que me limito a expor aqui as minhas pinturas fotográficas e verbais.
Tentemos um conto...
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A obra-prima

O escultor levou dezoito anos a criar a sua obra-prima.
Ergueu-a a partir do nada, ou seja, utilizando o material simultaneamente mais básico e mais complexo que se pode imaginar.
Ao longo dos anos fê-la crescer, dedicando-lhe os momentos mais inspirados do seu tempo, do seu desvelo, do seu carinho.
Quantas noites não passou sem dormir, desencantando soluções para as dificuldades que a obra lhe suscitava! Quanta alegria não o invadiu, ao reconhecer ter acertado nas opções feitas em cada etapa da sua construção! Quantas lágrimas não chorou ao imaginar, por vezes, que o objecto do seu enlevo poderia não atingir o destino que lhe fora traçado!

Quanto sofrimento, quanta felicidade, quanta angústia, quanto alívio não lhe causou essa ambiciosa obra, cuja finalização, pensava, lhe traria a compensação e o total reconhecimento pelo esforço despendido…
Lateralmente – pois o escultor tinha que ganhar a sua vida – concebia pequenas estatuetas em barro, que vendia em feiras do artesanato e lojas para turistas. Como oleiro, das suas mãos nasciam cântaros e jarros de belíssimas formas e elegantes linhas, encanto dos apreciadores que nelas vislumbravam ânforas gregas ou romanas e sonhos de longínquas ilhas plantadas num mar de azul intenso, coberto de céus com nuvens alvíssimas pincelando extensões grandiosas até ao horizonte.
Quando interrogavam o escultor acerca da sua obra-prima - à qual o próprio se referia, amiúde, como sendo de importância fundamental -, este sorria, feliz, respondendo vagamente: “A minha obra está à vista de todos!”.
Dezoito anos volvidos, o criador deu a obra por concluída. Não que o desejasse, é verdade - na sua ânsia de perfeição, poderia continuar ad eternum a modelá-la, retocá-la, acarinhá-la.
Foi a própria criatura que se assumiu perfeita! Proclamou-se livre, fez uma declaração de intenções e pediu dinheiro emprestado. Mochila às costas, apanhou o comboio, rumou à cidade. E aí se instalou.
Inicialmente, o escultor sofreu tormentos, preocupado com a saúde, a felicidade, o futuro do seu filho…
A passagem do tempo desvendou, porém, ao seu espírito inquieto, a realidade: a obra ganhara autonomia. Por si mesma encontrava soluções, tomava decisões, alegrava-se, chorava, vivia, criava! Criatura que era, tornara-se criador: da sua vida, da sua imagem, do seu percurso, da sua própria obra.
Do espanto à aceitação foi um passo. E actualmente o escultor dedica-se inteiramente a fazer nascer ânforas e sonhos, que o tornam conhecido pelo mundo inteiro.
Não surpreendentemente, o filho é também artista: pinta quadros maravilhosos, que começam a atrair a atenção dos grandes coleccionadores. Não somente o traço, as cores e as texturas, mas também a técnica, revelam uma originalidade que assombra e deleita.

Porém, a sua obra-prima não se encontra exposta nas galerias, nem é objecto de interesse para os especialistas e críticos.Trata-se, com efeito, de uma criatura pequena e activa, com faces rosadas, olhos castanhos e caracóis no cabelo. E o seu nome é Maria.
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Ilona Bastos
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